domingo, 28 de junho de 2009

Um pequeno adendo, sem figuras, escrito como a continuação de um texto por vir - e que ficou muito grande e descontextualizado, além de chato

Isto, aos meus olhos, é um grande problema. Quando alguém chega e diz que o budismo envolve a extinção dos desejos, eu sinto que, apesar da maior boa-vontade, há algo errado. É evidente que alguma parte desta reação é de uma pessoa deludida que vê nos seus desejos uma forma de realização, mas parar por aqui seria ser insincero comigo e com os outros. Há algo errado em dizer que o budismo prega a extinção dos desejos.

Eu posso estar errado, porém, então é melhor que todos parem de ler por aqui. Quanto aos computadores, eles não leem e não desejam, então estes bits somente acrescentam um pouco de gás carbônico na atmosfera.

Há um platonismo enrustido que percebe-se em muitos dos que procuram o budismo. A idéia de perfeição, pureza, de fim do desejo, de "outro lugar", de espiritualidade, de eternidade-para-alguém. Não há nada de errado com estas palavras: afinal de contas, que seria o budismo senão uma espécie de barquinho para a eternidade, para o "espiritual", para a "perfeição"? Mas são somente palavras. Escutamos "perfeição" e vemos a perfeição que gostaríamos de ver, nada mais. Para alguns, é uma perfeição perfeita; para outros, uma perfeição imperfeita, ou uma imperfeição a perfeitar. Isso não é importante. Para uns, pode ser o céu; para outros, a morte e nada mais. Também não é importante.

Nada contra Platão tenho eu. Eu também gostaria de ter ombros mais amplos. A questão é que, como todo bom filósofo, Platão apontou para um caminho, com palavras, e imediatamente formou-se uma visão sólida, que exclui tudo o mais. E as consequências seguiram-se inexoravelmente: não é a nossa filosofia uma série contínua de notas de rodapé ao platonismo? Esta é a nossa herança, e temos que saber lidar com ela. Até mesmo o nosso niilismo mais gostoso olha para Platão de soslaio.

Não é de estranhar, portanto, que um dos primeiros contatos do ocidente com o budismo-e-demais-tradições-indianas produziu, entre várias coisas, a tal da Blavatsky. Não é de estranhar que as tradições espirituais do oriente cheguem até aqui com uma forte familiaridade de idéias, reencontrada depois de séculos. Isomorfia inerente da vida espiritual humana, em todos os séculos e lugares, perguntarão uns? Ou releitura de uma cultura por outra através de seus óculos coloridos, dirão outros?

Chega desta chatice.

O "caminho do meio" não é apenas uma via de moderação, ou de andar por cima por muro. Talvez nem chegue a ser isto. O caminho do meio é o cortar em um. Acha que estou brincando com as palavras? Vá ler o Shodoka, vá shikantaza. Eu ainda preciso falar mais um pouquinho.

O "caminho do meio" chega a ser um pouco chocante. O budismo aponta para os paradoxos do pensamento, e isto está lá nos sutras originais, em páli, também, e não somente no desenvolvimento ulterior do zen ou que-seja. Não que o caminho do meio seja paradoxal e, portanto, "sem sentido"; quem diria que o paradoxal é o sem-sentido trairia sua maneira de pensar, a de quem procura a identidade no pensamento, no logos, nas Idéias. O "caminho do meio" é paradoxal pois ele precisa ser apontado com palavras, e descrito com palavras, mas as palavras caem em paradoxos que podem, sim, ser resolvidos, mas não em termos de palavras e idéias.

Ou alguém pode me explicar, com clareza e satisfação, de modo que eu possa ter uma compreensão racional vívida e clara, para que eu possa seguir o exemplo, do que seja o "caminho do meio"? Quero uma fala vívida e clara, idêntica a si mesma, sem espaço para contradições, do que seria cada um dos eixos do caminho óctuplo.

Não dá. A maneira de transmissão é outra. Quem achar que dá, por favor não entre em contato comigo.

A filosofia lidou com isto de forma admirável, evidentemente. Ninguém chegou e disse "a minha fala é o logos, logo eis a minha fala". A filosofia - e os filósofos, e não digo todos eles -, lidaria com isto com uma tentativa de aproximação - por exemplo, a dialética. A dialética é admirável. O ideal, porém, o "onde chegar", é o mesmo: a identidade do logos. Parece uma missão impossível, e talvez realmente o seja.

O caminho do meio, porém, não é impossível. Ele é possível. Sempre voltamos ao zazen, e quando começamos a sair dele voltamos novamente, como Shohaku Okumura roshi/sensei (dúvida) falou. "Não estamos querendo, mas continuamos indo, como eu", disse o monge Tokuda.

8 comentários:

  1. Estou contemplado... a tempos tenho filosofado na dificuldade de me fazer entender entre meus pares...

    Somos pares. Mas ão vivemos a mesma experiência. Tanto por, pois fomos educados a crêr nas palavras como impassíveis de erro, transformamos o escrito em uma forma de espelho correlato, uma lei... que não se presta ao erro (no seu trabalho de passar uma informação).

    Até o seria se não houvessem "leitores". Entre o expressar e o entender...

    Se apenas tivessemos uma forma de expressar sem erro o que se vive...

    Mas, noutra medida, não ter é que torna divino o ato de escrever...

    Goethe diria: "O homem que sabe reconhecer os limites da sua própria inteligência está mais perto da perfeição".

    Da minha parte reconhecer que a linguágem tem limitações torna a linguágem mais divina...

    Escrever é um ato de fé...

    Calar um ato de compaixão.

    Entender uma realização.

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  2. Caro lex,

    o velho Goethe se saía muito bem com os seus ditos. :D E você também se saiu muito bem com os seus. Bonitas palavras.

    Engraçado... com um tempo de prática, mesmo que relativamente pequeno, torna-se até possível falar do dharma com certa propriedade. Só que este falar e pensar leva somente apenas até onde você parou, com seus próprios pés; não leva para nenhum outro lugar. É o caso do autor deste blogue.

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  3. Qual a diferença entre desejar e querer?

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  4. Opa, João!

    Então, como psicólogo este é o tipo de pergunta que eu adoro, pois eu já sinto o comichãozinho pra botar a mão na massa e investigar sobre o "construto" (adoramos falar de construtos) desejo, e como poderíamos defini-lo, em especial com relação a outros construtos validados, como querer, etc.

    :D

    Esta é a pergunta que eu coloco, e sobre o que estou tentando escrever faz uma semana: as diferentes palavras usadas nos sutras páli para vontade, desejo, querência, luxúria, etc.

    Se é tudo a mesma coisa? Eu imagino que não. E você?

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  5. Se internamente eu entender como sendo iguais, elas passam a ser iguais. Se internamente eu entender como sendo diferentes, elas passam a ser diferentes. Questão de definição. E outra pessoa pode entender de forma totalmente diferente do que eu entendo.

    Já quanto ao uso "certo" ou coloquial, eu não sei bem. Se eu tivesse que chutar, para o uso atual, eu diria que "querer" é interpretado mais usualmente como sendo um pouco mais racional/intelectual, enquanto "desejar" tende um pouco mais para o lado fisiológico. Mas acho que o meu pai entende as mesmas palavras exatamente ao contrário!

    Por acaso sabes se esses construtos de que você fala seriam a mesma coisa do que antigamente era conhecido como "esquemas"? Pergunto isso porque estou lendo um livro meio velho (1956), "Tratado de Simbólica" de Mário Ferreira dos Santos em que ele fala o tempo todo desses "esquemas" que, combinados entre si, possibilitam a compreensão racional.

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  6. Combinações em diversas "camadas".

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  7. João,

    tudo o que falaste acima está de acordo. Questão de definição. O problema é que as palavras, embora tenham significantes arbitrários, não têm significados tão arbitrários assim.

    "Construto" é um termo maravilhosamente pragmático. Eu não sei se tem a ver com o "esquema" que você citou; chuto que não. Aliás, nunca ouvi falar do autor do livro citado, fiquei curioso. "Construto psicológico" é um termo muito utilizado na confecção e na validação de medidas - testes - psicológicos; teste tal mede a "atenção", e a atenção é um construto definido pelos autores do teste, com relação a outro(s) construto(s) e a literatura disponível sobre o fenômeno. Duas medidas, dois testes psicológicos podem focar-se sobre o mesmo fenômeno - atenção, no exemplo - mas terem construtos muito diversos, e resultados idem, e não serem intercambiáveis (os resultados de uma medida/teste não servirem para validar o outro).

    Esta foi uma das formas - se não um truque - para a psicologia escapar do abraço sufocante da filosofia.

    Tendo falado um pouco disto, voltemos ao desejo e ao querer. Vou pegar as tuas duas definições. "Querer" é uma coisa mais "racional/intelectual"; ótimo. Em outras palavras, você poderia dizer que "querer" é intencional, volitivo. A palavra em páli para isso seria cetanâ. "Desejo" é algo mais "fisiológico"; diríamos então que cairia do lado do "instinto", da vontade de sensações, um pouco de luxúria, e coisas assim? As palavras para isso, em páli, abundam: râga, kâmarâga, tañhâ, lobha. E não importa se seu pai está certo ou você. Eu também tenho outra definição de desejo, maculada pela minha experiência psicanalítica.

    Mas, apesar disto, dá pra chegar a certas áreas comuns do que costumamos chamar de "desejo". O problema é que falando de desejo falamos de muita, muita coisa. Você vai ver, copiei até uma lista cansativa de sinônimos a estrear no próximo poste.

    (Botarei um gif animado do "leek spin", porém, para não cansar os meus leitores mais irritadiços com estes meus surtos eruditos.)

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  8. É, esses construtos não são mesmo a mesma coisa que os esquemas. Muito bom esse autor Mário Ferreira dos Santos, já falecido. Um achado. Tem dezenas de livros publicados, a grande maioria de filosofia, mas tem conhecimento vasto em diversos outros campos, inclusive psicologia. Leva o pensamento racional ao limite do possível, mas ao mesmo tempo reconhece a limitação do mesmo. É um pouco difícil de entender porque é muito erudito, fazendo uma infinidade de referências a outros textos, mas quando pode explicar as coisas de maneira simples o faz sem enrolações, muito didaticamente. Tem uma clareza de exposição impressionante. Esse livro que eu estou lendo é muito bom, e pelo título dos demais dá pra antever que devem ser excelentes.

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