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segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Quatro votos do bodhisattva

眾生無邊誓願度
煩惱無盡誓願斷
法門無量誓願學
佛道無上誓願成

Seres sem limites prometo levar à outra margem;
aflições intermináveis prometo extinguir;
portais-do-dharma, imensuráveis, prometo estudar;
o Caminho do Buddha, inigualável, prometo realizar.

Notinhas
度 - "levar à outra margem", da margem do samsara para a margem do nirvana. Traduz-se também como paramita.
煩惱 - muitos significados. Ver aqui (inglês, login guest, sem senha).
學 - "estudar" envolve algo além do sentido acadêmico; trata-se de aprender e apreender, com corpo e mente, assim como aprendemos a andar.
法門 - termo clássico usado para os vários ensinamentos buddhistas.

Uma tradução livre dos "quatro votos". Atentem que todos os votos são "paradoxais" em sua formulação: como é possível extinguir o que nunca termina? Aqui, eles são como Aquiles e a tartaruga: uma corrida ao limite, nunca alcançado. Isto é desanimador para você? Mas porque seria? Se você, ao nascer, pensasse antecipadamente na quantidade de ar-dentro-ar-fora que tem de fazer (aprox. 250 milhões em 80 anos), não ficaria um tanto desgastado e desesperado?Mas nós não ficamos: inspiramos e expiramos a todo momento, sem pensar a respeito. Ficamos desgastados e desesperados com outras expectativas. Quando o ar nos falta, porém, onde elas estão?

Os quatro votos são assim: uma promessa e uma aposta, aposta de que mesmo que seja impossível e infinito, eu vou até o fim. Mesmo que não tenha potinho de ouro atrás do arco-íris, mesmo que não sejamos recompensados pela nossa virtude. Um bodhisattva desce aos "infernos" para "ajudar" os seres, mas esta descida não deve ser vista como um ponto a mais no currículo bodhisátvico. "O que isto me trará de bom?" é a pergunta que automaticamente invalida o bodhisattva, onde quer que ele esteja.

É esta mesma mente que vê o zazen como um meio e o Despertar como um fim, e que se irrita ou não compreende os quatro votos. Os dois, zazen e Despertar, estão muito entrelaçados, evidente; resta, porém, uma pergunta na multidão: depois do Despertar, então, não é necessário mais zazen (já que conseguimos o que queríamos)? A resposta não pode partir de mim, ela parte de Dogen: a prática é infindável, a (com)provação sempre se aprofunda mais e mais. Isto te deixa tonto?

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Anotações

Então, Al Gore faz gasshō em uma TED Talk. As TED Talks são uma das melhores coisas que se pode ver no youtube.com; as pessoas mais interessantes já fizeram os seus poucos minutos por lá, algumas mais de uma vez.

No meu mundinho, ser convidado para participar de uma deve ser bem divertido. Eu ia dizer "uma grande honra", mas deve ser mais divertido que honrável.

É claro que Isabel Allende, a prometida de Pablito, deu as caras por lá e nos conta por que ainda fala de feminismo, e se diz feminista. Tales of passion; não se arrepiem, Budistas Empedernidos, um pouco de paixão nada tem de mais, especialmente com uma broa de fubá quentinha.

Ela nos conta do momento em que carregou a bandeira nas olimpíadas de inverno de 2007, juntamente com outras notáveis mulheres, como Sophia Loren que, altiva, imitava a Liberdade conduzindo os homens - e Isabel Allende entre as suas pernas nas fotografias.

Perguntada sobre o segredo de ser bonita e uma velha senhora - rá -, Sophia responde: postura. E não fazer barulhos de gente velha.

Sophia, aguardamos você hoje, quarta-feira, às 19:30 horas, na CZBF.

*****

Encontrei ontem, ao limpar meus papéis, algo que achei, tristemente, que tinha perdido: as minhas anotações curtas da palestra que o sensei/roshi (dúvida que seu çaite não dirime) Shohaku Okumura deu, no rohatsu sesshin de 2008 no Busshin-ji, em São Paulo.

As palestras foram sobre os 16 preceitos, ou mais exatamente sobre os 3+3+10 preceitos no zen. Tomando quatro textos como referência - um sutra sobre as quatro "ofensas" parajika, o sutra da rede de Brahma, os comentários de Bodhidharma sobre os preceitos e o Ryaku Fusatsu de Dōgen - Okumura roshi falou sobre os preceitos e sobre a sua evolução, se assim podemos dizer, através dos vários autores.

A minha anotação, refiro-me a ela no singular, pois na verdade ela é uma anotação sobre um preceito específico com o qual, exatamente, eu tenho as minhas conversas e divergências.

Claro que se trata da "regra de treinamento de abster-me de comercializar e consumir bebidas alcoólicas/intoxicantes", como está no texto original em páli.

Bem, comercializar... tudo bem, mas abster-se?

Todos sabemos, porém, que o preceito expandiu-se e diz atualmente o seguinte: tomo o voto de abster-me de substâncias que alterem a consciência. Eu vou pular toda a discussão sobre o que seria uma droga ou não, o que seria vício ou não, pois no meu mundinho particular estamos também envolvidos em um mar de "drogas" e "vícios", pois em muitos casos, realmente, o valor está nos olhos do "vedor". Sabe aquele potinho de nescau que você tem no seu armário? Então. Aquelas partidinhas básicas de paciência spider para desanuviar? Ih.

O Adversário vos espreita de todos os lados, dê o nome que quiser - Satã, Mara, ______ (insira seu nome aqui - não, não o seu nome, o nome que você quiser dar!)

Mas, somente para pensar, pensemos na famosa ambiguidade das palavras pharmakon e droga.

Enfim, o que vou me abster por hoje é de entrar em um clima confissional. Estou me sentindo muito pouco augustiniano hoje, e não vou contar quantas pêras eu roubei do vizinho - no meu caso, goiabas, e não do vizinho.

A questão é que todas - a maioria, pelo menos - das regras monásticas (do vinaya) têm uma historieta por trás: a maioria das vezes é algum bhikku que faz algo não muito proveitoso e uma regrinha surge para evitar tais atos no futuro. Evidentemente todas elas têm um sentido muito pragmático, mensurada pelas consequências do ato, especialmente naquele contexto. Prestes a morrer, o Buda dá como conselho a Ananda que as regras "menores" de até então podem ser abolidas - e como Ananda não perguntou quais eram, todo mundo decidiu abolir nenhuma.

Mas, ao falar dos "preceitos", não estamos falando das regras do vinaya. Todas as regras do vinaya têm como corolário o fato de serem "regras de treinamento", i.e. regras de conduta para quando uma pessoa estiver "em treinamento" monástico. Os preceitos aqui falados são os preceitos que são "tomados" por qualquer um que pratique o budismo, monge ou leigo. Especificamente, referem-se aos preceitos tomados na "ordenação leiga" (jukai) no zen.

Sabendo, por experiência(s) própria(s), que o consumo de "substâncias que alteram a consciência" podem ter, como consequência, um descuidado, uma falta de atenção, desconsideração e agir de forma que nos arrependamos mais tarde (o que a partir deste momento eu chamarei apenas de heedlessness), é bom-senso que observemos este processo e evitemos de entrar nele despreparadamente e descuidadamente.

Quer dizer: pode ser possível embebedar-se - e demais quetais - sem cair em heedlessness?

Quando criança eu tinha dores de barriga e problemas intestinais por comer goiabas verdes - as "verdurangas", como eu as chamava. Adorava. Adorava comer trevinhos e azedinhas, também. Comia um monte de verdurangas e depois não conseguia comer mais nada, e passava mal. Mas nunca prometi que ia parar de comer verdurangas, e apesar das reclamações de criança, nunca fiz algo do qual me arrependesse, por causa delas. Talvez tenha incomodado algumas pessoas - mãe, pai, etc. - mas nunca propositadamente. As goiabas eram verdurangas, e isto é tudo.

A resposta para a questão anterior é "parece que sim". O caso clássico, para o Ocidente, é o de Sócrates, que dizia-se que nunca se embebedava, por mais que bebesse. O Banquete termina com todos os convivas - que beberam de menos, por estarem todos de ressaca pela bebemoração da vitória de Agatão na noite anterior - sonolentos e dormindo, o sol quase raiando, enquanto Sócrates ainda conversa com os poucos acordados e sóbrios o suficiente. Depois, tendo amanhecido e todos dormido, ele vai para o Liceu se lavar e parte direto para um novo dia normal.

Mas a questão que coloquei não procura por uma suposta resistência ao álcool. Isto não é "privilégio" de muitos, e enfim, vivemos na era das designer drugs: daqui a pouco surgirá o álcool que embebeda menos e não provoca enjôos, o café que provoca menos arritmias e frio nas mãos, a maconha que não provoca lapsos de memória. Quem já viu as pessoas que não sentem dor (fisiologicamente, e não casos de anestesia "psíquica") sabem que não sentir dor não é nenhum privilégio, tampouco. [aqui, aqui, aqui, aqui e aqui]

A questão da heedlessness, portanto, tem a ver sim com as "substâncias", mas não é por causa delas que a anterior necessariamente acontece: digamos que beber/comer/ver/ingerir é causa eficiente, mas não causa final, da heedlessness.

No belo videozinho abaixo, por exemplo, o filho age de forma descuidada e rude com o pai. Donde surgiu aquele tom de voz, aquela impaciência, aqueles movimentos corporais? E de onde surgiu aquele tom de voz, aquela paciência, aqueles movimentos corporais por parte do pai?

"Cuidado", aqui, pode dar a impressão de ser uma coisa estudada, extremamente racional e ponderada, mas não precisa ser. Os movimentos podem ser estudados - i.e. atentos, ponderados - como os movimentos das mãos que falei anteriormente, mas depois de um tempo eles podem se tornar naturais sem, contudo, serem descuidados. Então não pensemos que a "atenção" é somente em termos cognitivos. O próprio zazen, com o passar do tempo e com prática, torna-se mais natural sem descuidar-se.

Há. assim, historietas de mestres do zen que, depois de uma vida ensinando, vão "viver a vida adoidado"; outros que gostam de uma biritinha nas noites frias de inverno. Não são todos e são poucos, evidentemente. Maezumi roshi morreu afogado em uma banheira, depois de uma suposta bebedeira com os irmãos. Quer dizer, "ser zen" não impede você de não vomitar - e, se impedir, uma grande perda para a indústria farmacêutica - mas pelo menos pode ajudar a não fazer bafão.

O interessante é que "álcool" é aqui utilizado como paradigma de substância que altera a consciência, e por bons motivos. Um deles histórico: o álcool está por aí, em uso praticamente geral, por muito, muito mais tempo que qualquer outra coisa que tenhamos hoje em dia, inclusive tabaco e café. Estes dois últimos são muito recentes no Ocidente, praticamente desconhecidos na Índia do século V aC, um pouco mais conhecidos na China dos primeiros séculos aD e Japão de Dôgen.

Outro motivo, decorrente do primeiro, é que por ser mais conhecido, todo mundo já conhece o que acontece com as pessoas quando elas bebem, especialmente porque a maioria das pessoas já bebeu ou bebe. Isto talvez não fosse verdade antigamente, mas o é hoje em dia. "Alcoolismo" é visivelmente um problema seriíssimo, não precisando ser abstraído para ser visto; está ali do lado. Viver em um país no qual um litro de cachaça custa o mesmo que um pacote de pão de trigo o pode mostrar.

Assim, o sutra da rede de Brahma diz: "um discípulo de Buda não deve comercializar bebidas alcoólicas, ou encorajar outros a fazer o mesmo. Ele não deve criar as causas, condições, métodos ou karma de vender qualquer intoxicante, pois estes são causas e condições de todos os tipos de ofensas. Como um discípulo do Buda, ele deve ajudar todos os seres sencientes a alcançar uma clara sabedoria. Se, em vez disso, ele faz com que eles tenham pensamentos distorcidos e confusos (upside-down, topsy-turvy thinking), ele comete uma ofensa Parajika."

É continuação direta, portanto, do preceito original das primeiras comunidades budistas. A questão já aparece, porém, de que o preceito está relacionado com a dupla sabedoria/ignorância: intoxicantes podem criar as causas e condições para ações insalubres, akusala. Há, aqui, um interjogo do que, em páli, é chamado de kilesa, “mancha, veneno, poluição, sujeira, intoxicação", algo que mancha e suja a mente.

O comentário de Bodhidharma sobre o preceito diz: "a natureza-una (自性, natureza fundamental) é sutil e maravilhosa, e dentro do dharma [cuja natureza] é intrinsicamente/originalmente pura, não ser cegado pela ignorância (無明, avidyā) é chamado de 'preceito de não tomar bebidas intoxicantes'".

Não é interessante? O dharma é originalmente puro. O preceito de "não tomar bebidas intoxicantes" é para não ser cegado pela ignorância. Esta ignorância, é ignorância em relação a quê? Deixo a resposta em aberto para todos nós.

A minha anotação, que se resume a apenas uma folha de caderno, relaciona-se ao comentário de Dōgen sobre o mesmo preceito. Pedi para que uma senhora ao meu lado anotasse os kanji que Dōgen usa, e sobre os quais Okumura sensei roshi falava. No texto, em português, do Ryaku Fusatsu que foi-nos distribuído, está: "Quinto. (a Ilusão) Não tomar das bebidas inebriantes. Não agarrar e nem violar, esta é a grande luminosidade da sabedoria".

Os ideogramas estão próximos desta tradução, e são

未将来(又)
mi shō rai (mo)
“não trazidos para dentro (também, ainda)”

莫教侵
maku kyo shin
“não deixe com que invadam”

Para Okumura, tal comentário de Dōgen está relacionado com uma história que envolve Huineng e Tozan. Infelizmente não pude encontrar esta história e as minhas anotações não deixam claro quem disse o quê e onde. É uma história em que um dos dois responde 96 “nãos” para a pergunta de um praticante. “96 nãos” de Tozan? De Huineng? Não sei. Entre aspas, porém, anotei a fala de um dos dois: “mesmo se ela fosse trazida para dentro, eu não teria lugar para colocá-la”.

Contentemo-nos com isto, por ora.