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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Fukanzazengi

Abaixo, algumas primeiras linhas do texto do Fukanzazengi (普勧坐禅儀) de Dōgen Zenji, interpolado.

Na primeira linha temos o texto “original” (原文), que não sei de qual das versões é (shinpitsu- ou rufu-bon, provavelmente a última) encontrado aqui.

Na segunda linha está a frase acima em japonês moderno, encontrado também aqui e em um folheto da CZBF; os parênteses são a leitura em hiragana dos ideogramas anteriores, uma alternativa ao furigana.

Abaixo a romanização (da segunda linha), tirado do mesmo folheto. Os colchetes indicam divergências: os [] indicam texto do folheto que difere (da outra fonte) do caractere imediatamente precendente, e os {} apresentam texto da página online que difere do folheto da mesma forma.

A quarta linha é a tradução do pessoal de Antai-ji, e a quinta linha é a tradução em português do pessoal do Busshin-ji. Várias outras traduções estão disponíveis.

原夫道本圓通、爭假修證。
原(たず)ぬるに[、]夫(そ)れ道本円通(どうもとえんづ[ず]う)、争(いか)でか修証(しゅしょう)を仮(か)らん。
tazunuru ni sore dō moto en zū, ika de ka shushō o karan.
The Way is originally perfect and all-pervading. What need is there for practice and realization?
Quando se busca a fonte do caminho, percebe-se que ele é absoluto e tudo permeia. É desnecessário distinguir entre “prática” e “iluminação”.

宗乘自在、何費功夫。
宗乗(しゅうじょう)自在[、]何ぞ功夫(くふう)を費(ついや)さん。
shū jō ji zai nan zo ku fū o tsuiya san.
The Dharma vehicle is rolling freely. Why should we exhaust our effort?
O ensinamento supremo é livre, então por que estudar os meios para alcançá-lo?

況乎全體逈出塵埃兮、孰信拂拭之手段。
況んや全体逈(はる)かに塵埃(じんない)を出(い)づ[ず]、孰(たれ)か払拭(ほっしき)の手段を信ぜん。
iwan ya zan tai haru ka ni jin nai o izu, tare ka hosshiki no shu dan o shin zen.
There is no speck of dust in the whole universe. How could we ever try to brush it clean?
O caminho é, desnecessário dizer, muito diferente da delusão. Por quê, então, preocupar-se com os meios de eliminá-la?

大都不離當處兮、豈用修行之脚頭者乎。
大都(おおよそ)当処(とうじょ)を離れず、豈{に}修行の脚頭(きゃくとう)を用ふる者[もの]ならんや。
ō yoso, to jō o hanarezu, a ni shu gyō no kyakutō o mochi uru mono naran ya.
Everything is manifest at this very place. Where are we supposed to direct the feet of our practice?
O caminho está completamente presente onde você está, então para que servem a prática e a iluminação?

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Anotações

Então, Al Gore faz gasshō em uma TED Talk. As TED Talks são uma das melhores coisas que se pode ver no youtube.com; as pessoas mais interessantes já fizeram os seus poucos minutos por lá, algumas mais de uma vez.

No meu mundinho, ser convidado para participar de uma deve ser bem divertido. Eu ia dizer "uma grande honra", mas deve ser mais divertido que honrável.

É claro que Isabel Allende, a prometida de Pablito, deu as caras por lá e nos conta por que ainda fala de feminismo, e se diz feminista. Tales of passion; não se arrepiem, Budistas Empedernidos, um pouco de paixão nada tem de mais, especialmente com uma broa de fubá quentinha.

Ela nos conta do momento em que carregou a bandeira nas olimpíadas de inverno de 2007, juntamente com outras notáveis mulheres, como Sophia Loren que, altiva, imitava a Liberdade conduzindo os homens - e Isabel Allende entre as suas pernas nas fotografias.

Perguntada sobre o segredo de ser bonita e uma velha senhora - rá -, Sophia responde: postura. E não fazer barulhos de gente velha.

Sophia, aguardamos você hoje, quarta-feira, às 19:30 horas, na CZBF.

*****

Encontrei ontem, ao limpar meus papéis, algo que achei, tristemente, que tinha perdido: as minhas anotações curtas da palestra que o sensei/roshi (dúvida que seu çaite não dirime) Shohaku Okumura deu, no rohatsu sesshin de 2008 no Busshin-ji, em São Paulo.

As palestras foram sobre os 16 preceitos, ou mais exatamente sobre os 3+3+10 preceitos no zen. Tomando quatro textos como referência - um sutra sobre as quatro "ofensas" parajika, o sutra da rede de Brahma, os comentários de Bodhidharma sobre os preceitos e o Ryaku Fusatsu de Dōgen - Okumura roshi falou sobre os preceitos e sobre a sua evolução, se assim podemos dizer, através dos vários autores.

A minha anotação, refiro-me a ela no singular, pois na verdade ela é uma anotação sobre um preceito específico com o qual, exatamente, eu tenho as minhas conversas e divergências.

Claro que se trata da "regra de treinamento de abster-me de comercializar e consumir bebidas alcoólicas/intoxicantes", como está no texto original em páli.

Bem, comercializar... tudo bem, mas abster-se?

Todos sabemos, porém, que o preceito expandiu-se e diz atualmente o seguinte: tomo o voto de abster-me de substâncias que alterem a consciência. Eu vou pular toda a discussão sobre o que seria uma droga ou não, o que seria vício ou não, pois no meu mundinho particular estamos também envolvidos em um mar de "drogas" e "vícios", pois em muitos casos, realmente, o valor está nos olhos do "vedor". Sabe aquele potinho de nescau que você tem no seu armário? Então. Aquelas partidinhas básicas de paciência spider para desanuviar? Ih.

O Adversário vos espreita de todos os lados, dê o nome que quiser - Satã, Mara, ______ (insira seu nome aqui - não, não o seu nome, o nome que você quiser dar!)

Mas, somente para pensar, pensemos na famosa ambiguidade das palavras pharmakon e droga.

Enfim, o que vou me abster por hoje é de entrar em um clima confissional. Estou me sentindo muito pouco augustiniano hoje, e não vou contar quantas pêras eu roubei do vizinho - no meu caso, goiabas, e não do vizinho.

A questão é que todas - a maioria, pelo menos - das regras monásticas (do vinaya) têm uma historieta por trás: a maioria das vezes é algum bhikku que faz algo não muito proveitoso e uma regrinha surge para evitar tais atos no futuro. Evidentemente todas elas têm um sentido muito pragmático, mensurada pelas consequências do ato, especialmente naquele contexto. Prestes a morrer, o Buda dá como conselho a Ananda que as regras "menores" de até então podem ser abolidas - e como Ananda não perguntou quais eram, todo mundo decidiu abolir nenhuma.

Mas, ao falar dos "preceitos", não estamos falando das regras do vinaya. Todas as regras do vinaya têm como corolário o fato de serem "regras de treinamento", i.e. regras de conduta para quando uma pessoa estiver "em treinamento" monástico. Os preceitos aqui falados são os preceitos que são "tomados" por qualquer um que pratique o budismo, monge ou leigo. Especificamente, referem-se aos preceitos tomados na "ordenação leiga" (jukai) no zen.

Sabendo, por experiência(s) própria(s), que o consumo de "substâncias que alteram a consciência" podem ter, como consequência, um descuidado, uma falta de atenção, desconsideração e agir de forma que nos arrependamos mais tarde (o que a partir deste momento eu chamarei apenas de heedlessness), é bom-senso que observemos este processo e evitemos de entrar nele despreparadamente e descuidadamente.

Quer dizer: pode ser possível embebedar-se - e demais quetais - sem cair em heedlessness?

Quando criança eu tinha dores de barriga e problemas intestinais por comer goiabas verdes - as "verdurangas", como eu as chamava. Adorava. Adorava comer trevinhos e azedinhas, também. Comia um monte de verdurangas e depois não conseguia comer mais nada, e passava mal. Mas nunca prometi que ia parar de comer verdurangas, e apesar das reclamações de criança, nunca fiz algo do qual me arrependesse, por causa delas. Talvez tenha incomodado algumas pessoas - mãe, pai, etc. - mas nunca propositadamente. As goiabas eram verdurangas, e isto é tudo.

A resposta para a questão anterior é "parece que sim". O caso clássico, para o Ocidente, é o de Sócrates, que dizia-se que nunca se embebedava, por mais que bebesse. O Banquete termina com todos os convivas - que beberam de menos, por estarem todos de ressaca pela bebemoração da vitória de Agatão na noite anterior - sonolentos e dormindo, o sol quase raiando, enquanto Sócrates ainda conversa com os poucos acordados e sóbrios o suficiente. Depois, tendo amanhecido e todos dormido, ele vai para o Liceu se lavar e parte direto para um novo dia normal.

Mas a questão que coloquei não procura por uma suposta resistência ao álcool. Isto não é "privilégio" de muitos, e enfim, vivemos na era das designer drugs: daqui a pouco surgirá o álcool que embebeda menos e não provoca enjôos, o café que provoca menos arritmias e frio nas mãos, a maconha que não provoca lapsos de memória. Quem já viu as pessoas que não sentem dor (fisiologicamente, e não casos de anestesia "psíquica") sabem que não sentir dor não é nenhum privilégio, tampouco. [aqui, aqui, aqui, aqui e aqui]

A questão da heedlessness, portanto, tem a ver sim com as "substâncias", mas não é por causa delas que a anterior necessariamente acontece: digamos que beber/comer/ver/ingerir é causa eficiente, mas não causa final, da heedlessness.

No belo videozinho abaixo, por exemplo, o filho age de forma descuidada e rude com o pai. Donde surgiu aquele tom de voz, aquela impaciência, aqueles movimentos corporais? E de onde surgiu aquele tom de voz, aquela paciência, aqueles movimentos corporais por parte do pai?

"Cuidado", aqui, pode dar a impressão de ser uma coisa estudada, extremamente racional e ponderada, mas não precisa ser. Os movimentos podem ser estudados - i.e. atentos, ponderados - como os movimentos das mãos que falei anteriormente, mas depois de um tempo eles podem se tornar naturais sem, contudo, serem descuidados. Então não pensemos que a "atenção" é somente em termos cognitivos. O próprio zazen, com o passar do tempo e com prática, torna-se mais natural sem descuidar-se.

Há. assim, historietas de mestres do zen que, depois de uma vida ensinando, vão "viver a vida adoidado"; outros que gostam de uma biritinha nas noites frias de inverno. Não são todos e são poucos, evidentemente. Maezumi roshi morreu afogado em uma banheira, depois de uma suposta bebedeira com os irmãos. Quer dizer, "ser zen" não impede você de não vomitar - e, se impedir, uma grande perda para a indústria farmacêutica - mas pelo menos pode ajudar a não fazer bafão.

O interessante é que "álcool" é aqui utilizado como paradigma de substância que altera a consciência, e por bons motivos. Um deles histórico: o álcool está por aí, em uso praticamente geral, por muito, muito mais tempo que qualquer outra coisa que tenhamos hoje em dia, inclusive tabaco e café. Estes dois últimos são muito recentes no Ocidente, praticamente desconhecidos na Índia do século V aC, um pouco mais conhecidos na China dos primeiros séculos aD e Japão de Dôgen.

Outro motivo, decorrente do primeiro, é que por ser mais conhecido, todo mundo já conhece o que acontece com as pessoas quando elas bebem, especialmente porque a maioria das pessoas já bebeu ou bebe. Isto talvez não fosse verdade antigamente, mas o é hoje em dia. "Alcoolismo" é visivelmente um problema seriíssimo, não precisando ser abstraído para ser visto; está ali do lado. Viver em um país no qual um litro de cachaça custa o mesmo que um pacote de pão de trigo o pode mostrar.

Assim, o sutra da rede de Brahma diz: "um discípulo de Buda não deve comercializar bebidas alcoólicas, ou encorajar outros a fazer o mesmo. Ele não deve criar as causas, condições, métodos ou karma de vender qualquer intoxicante, pois estes são causas e condições de todos os tipos de ofensas. Como um discípulo do Buda, ele deve ajudar todos os seres sencientes a alcançar uma clara sabedoria. Se, em vez disso, ele faz com que eles tenham pensamentos distorcidos e confusos (upside-down, topsy-turvy thinking), ele comete uma ofensa Parajika."

É continuação direta, portanto, do preceito original das primeiras comunidades budistas. A questão já aparece, porém, de que o preceito está relacionado com a dupla sabedoria/ignorância: intoxicantes podem criar as causas e condições para ações insalubres, akusala. Há, aqui, um interjogo do que, em páli, é chamado de kilesa, “mancha, veneno, poluição, sujeira, intoxicação", algo que mancha e suja a mente.

O comentário de Bodhidharma sobre o preceito diz: "a natureza-una (自性, natureza fundamental) é sutil e maravilhosa, e dentro do dharma [cuja natureza] é intrinsicamente/originalmente pura, não ser cegado pela ignorância (無明, avidyā) é chamado de 'preceito de não tomar bebidas intoxicantes'".

Não é interessante? O dharma é originalmente puro. O preceito de "não tomar bebidas intoxicantes" é para não ser cegado pela ignorância. Esta ignorância, é ignorância em relação a quê? Deixo a resposta em aberto para todos nós.

A minha anotação, que se resume a apenas uma folha de caderno, relaciona-se ao comentário de Dōgen sobre o mesmo preceito. Pedi para que uma senhora ao meu lado anotasse os kanji que Dōgen usa, e sobre os quais Okumura sensei roshi falava. No texto, em português, do Ryaku Fusatsu que foi-nos distribuído, está: "Quinto. (a Ilusão) Não tomar das bebidas inebriantes. Não agarrar e nem violar, esta é a grande luminosidade da sabedoria".

Os ideogramas estão próximos desta tradução, e são

未将来(又)
mi shō rai (mo)
“não trazidos para dentro (também, ainda)”

莫教侵
maku kyo shin
“não deixe com que invadam”

Para Okumura, tal comentário de Dōgen está relacionado com uma história que envolve Huineng e Tozan. Infelizmente não pude encontrar esta história e as minhas anotações não deixam claro quem disse o quê e onde. É uma história em que um dos dois responde 96 “nãos” para a pergunta de um praticante. “96 nãos” de Tozan? De Huineng? Não sei. Entre aspas, porém, anotei a fala de um dos dois: “mesmo se ela fosse trazida para dentro, eu não teria lugar para colocá-la”.

Contentemo-nos com isto, por ora.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Traduções


As traduções brasileiras de textos do zen deixam muito, muito a desejar. Neste, e nos próximos textos, eu vou esclarecer o porquê.

Em muitas delas, eu somente posso acompanhar o processo da metade para a frente: do japonês, que não entendo, ele vai para o francês ou inglês, digamos, e depois é retraduzido para o português - e é neste segundo passo que consigo perceber a inépcia, em muitos casos. Fico imaginando as barbáries que podem acontecer nas primeiras traduções "oriente-ocidente" e temo e tremo.

Eu brinco, evidentemente. Costumo partir do pressuposto que os tradutores são pessoas que desejam traduzir o texto e possuem, além de um certo conhecimento formal do processo, uma idéia do que o texto fala, para o momento - que certamente aparecerá - em que o tradutor escreverá algo de seu, por não poder traduzir sem trair.

A questão é que más traduções podem, muitas vezes, ser bem menos desejáveis do que texto nenhum. Para quem tem paciência de encarar o texto supostamente mal-traduzido e quiser pesquisar e saber mais, há, pelo menos, um pouco de tesão e divertimento no meio. É, divertimento intelectual, pode soar estranho mas há. Mas para aqueles que querem ler, pura e simplesmente, e ter acesso ao que um mestre do zen disse, ou deixou de dizer, pode ser um grande impedimento.

Penso especialmente em Dogen. Dogen é um escritor fabuloso, do pouco que pude captar, de um estilo único e delicioso que interessaria, em alguns casos, até mesmo a quem não quer ouvir falar de budismo ou zen. Textos claros e simples, escritos para discípulos, leigos ou não, misturam-se com trechos de poesia e técnica e visão assustadoramente modernas, e dez páginas adiante você pode encontrar uma confissão no melhor estilo augustiniano, para então, em outro lugar, ver instruções detalhadamente obsessivas sobre como escovar os dentes e demais quetais de um mosteiro.

(continua...)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Temeridade


Kashin mandou este texto para a lista zensul@yahoogrupos.com.br.

Certa noite voltei ao meu eremitério após caminhar nas montanhas, e percebi que todas as portas e janelas da cabana estavam completamente abertas. Ao deixar a casa, eu não as havia fixado, e um vento frio soprou através da habitação, abrindo as janelas e espalhando por toda a sala os papéis que estavam sobre minha mesa. Imediatamente fechei as portas e janelas, acendi uma lâmpada, recolhi os papéis e arrumei-os ordenadamente sobre minha mesa. Acendi então o fogo da lareira, e logo a lenha crepitante voltou a aquecer a sala.

Algumas vezes nos sentimos cansados, com frio e solitários no meio da multidão. Podemos desejar nos retirar para sermos nós mesmos e nos aquecermos novamente, como fiz no eremitério, sentando-me perto do fogo, protegido do vento frio e úmido. Nossos sentidos são janelas para o mundo exterior, e algumas vezes o vento sopra e nos perturba interiormente. Muitos de nós deixamos a janela aberta o tempo todo, permitindo que as visões e os sons do mundo nos invadam, nos penetrem e exponham nosso eu triste e perturbado. Ficamos com muito frio e nos sentimos solitários e temerosos. Você já deu consigo assistindo a um programa horrível na televisão e incapaz de desligá-la? Os sons estridentes e o estampido de armas de fogo são desagradáveis. No entanto, você não se levanta para desligar a televisão. Por que você se tortura dessa maneira? Você não quer fechar suas janelas? Está com medo de ficar sozinho – do vazio e da solidão que poderá encontrar quando se vir a sós?
Thich Nhat Hanh. O Sol meu coração: da atenção à contemplação intuitiva. Editora Paulus: São Paulo, 1995

Eu não sei, Thay. Eu não sei por que faço isto. Não sei por que fazemos isto.

Dogen, no seu breve manual sobre o zazen (fukanzazengi), diz: escolha um lugar confortável, protegido de ventos e sol, nem muito frio nem muito quente, com um assento confortável e roupas limpas e confortáveis; esteja saciado e sente-se da maneira mais confortável possível. E daí então faça zazen, "dando o passo para trás e voltando a luz para iluminar dentro".

É como voltar para casa, fechar as janelas e acender a lareira. E botar os papéis em ordem.

Aqui em casa - meu apartamento é um belo receptáculo de sol, ele pega sol de todos os lados possíveis e imagináveis - toda vez que começa uma chuva é como se fôssemos marinheiros correndo pelo convés e gritando "ôôô", e lá se vão as janelas a fechar. Pode ser aquela chuva úmida de verão, ou aquela fria e cheia de vento das estações mais frias, não importa: a janela fica fechada enquanto estiver chovendo. Não queremos molhar móveis e chão de madeira, e o telhado parece um caixote e não tem beiral. Até o próximo verão gostaria de ver toldos nas janelas, mas acho que é ele ou eu, alguém vai ter que sair e talvez seja a segunda opção.

Não seria mais apropriado deixar chover, já que as janelas já estão abertas? Não seria mais natural deixar ventar, já que o vento sopra? Bem, ventar é a atividade do vento, e fechar janelas e acender lareiras é a nossa.

Talvez a prática do zazen nos torne temerários demais, sem motivo. Estar sentado com todas as coisas que vem e vão, muitas vezes acompanhado de dores que não cessam, passando por turbilhões de pensamentos e sentimentos confusos, pode nos fazer pensar que "temos" que passar por todas as coisas, independente do que sejam. Que temos que sentar no frio, ou no calor, ou na fome; não como fato dado no mundo - que muitas vezes, por mais ajuda que tivermos, está quente ou frio e pronto - mas sim como se fôssemos atrás disto, como se precísassemos. Como se tivéssemos.

Nós não temos nada.

Sim, queremos olhar para tudo isto na tevê. Não conseguimos, queremos, desligar. Lembro-me até hoje, quando da queda das torres gêmeas em Nova Iorque: a repetição incessante da mesma imagem, da mesma cena girando em volta da mesma partícula condensada de tempo, o tempo do impacto do avião no prédio, sendo mostrada incessantemente, como se a imagem quisesse se projetar e impactar incessantemente, tanto no prédio quanto nas nossas retinas - e como queríamos, muitos, que assim fosse. Como animais que se paralizam quando olham para um farol de carro: é a fascinação que vem misturada com o terror e o medo.

O medo nos faz ser temerários, nos faz querer ser temerários - ou então nos paraliza. E quem foi que disse que a coragem, esta "virtude", "excelência" tão antiga, não é ter medo? Coragem pode ser, mesmo tendo medo, escolher não agir de acordo com ele. Entre o medo e a temeridade.