Kashin mandou este texto para a lista zensul@yahoogrupos.com.br.
Thich Nhat Hanh. O Sol meu coração: da atenção à contemplação intuitiva. Editora Paulus: São Paulo, 1995Certa noite voltei ao meu eremitério após caminhar nas montanhas, e percebi que todas as portas e janelas da cabana estavam completamente abertas. Ao deixar a casa, eu não as havia fixado, e um vento frio soprou através da habitação, abrindo as janelas e espalhando por toda a sala os papéis que estavam sobre minha mesa. Imediatamente fechei as portas e janelas, acendi uma lâmpada, recolhi os papéis e arrumei-os ordenadamente sobre minha mesa. Acendi então o fogo da lareira, e logo a lenha crepitante voltou a aquecer a sala.
Algumas vezes nos sentimos cansados, com frio e solitários no meio da multidão. Podemos desejar nos retirar para sermos nós mesmos e nos aquecermos novamente, como fiz no eremitério, sentando-me perto do fogo, protegido do vento frio e úmido. Nossos sentidos são janelas para o mundo exterior, e algumas vezes o vento sopra e nos perturba interiormente. Muitos de nós deixamos a janela aberta o tempo todo, permitindo que as visões e os sons do mundo nos invadam, nos penetrem e exponham nosso eu triste e perturbado. Ficamos com muito frio e nos sentimos solitários e temerosos. Você já deu consigo assistindo a um programa horrível na televisão e incapaz de desligá-la? Os sons estridentes e o estampido de armas de fogo são desagradáveis. No entanto, você não se levanta para desligar a televisão. Por que você se tortura dessa maneira? Você não quer fechar suas janelas? Está com medo de ficar sozinho – do vazio e da solidão que poderá encontrar quando se vir a sós?
Eu não sei, Thay. Eu não sei por que faço isto. Não sei por que fazemos isto.
Dogen, no seu breve manual sobre o zazen (fukanzazengi), diz: escolha um lugar confortável, protegido de ventos e sol, nem muito frio nem muito quente, com um assento confortável e roupas limpas e confortáveis; esteja saciado e sente-se da maneira mais confortável possível. E daí então faça zazen, "dando o passo para trás e voltando a luz para iluminar dentro".
É como voltar para casa, fechar as janelas e acender a lareira. E botar os papéis em ordem.
Aqui em casa - meu apartamento é um belo receptáculo de sol, ele pega sol de todos os lados possíveis e imagináveis - toda vez que começa uma chuva é como se fôssemos marinheiros correndo pelo convés e gritando "ôôô", e lá se vão as janelas a fechar. Pode ser aquela chuva úmida de verão, ou aquela fria e cheia de vento das estações mais frias, não importa: a janela fica fechada enquanto estiver chovendo. Não queremos molhar móveis e chão de madeira, e o telhado parece um caixote e não tem beiral. Até o próximo verão gostaria de ver toldos nas janelas, mas acho que é ele ou eu, alguém vai ter que sair e talvez seja a segunda opção.
Não seria mais apropriado deixar chover, já que as janelas já estão abertas? Não seria mais natural deixar ventar, já que o vento sopra? Bem, ventar é a atividade do vento, e fechar janelas e acender lareiras é a nossa.
Talvez a prática do zazen nos torne temerários demais, sem motivo. Estar sentado com todas as coisas que vem e vão, muitas vezes acompanhado de dores que não cessam, passando por turbilhões de pensamentos e sentimentos confusos, pode nos fazer pensar que "temos" que passar por todas as coisas, independente do que sejam. Que temos que sentar no frio, ou no calor, ou na fome; não como fato dado no mundo - que muitas vezes, por mais ajuda que tivermos, está quente ou frio e pronto - mas sim como se fôssemos atrás disto, como se precísassemos. Como se tivéssemos.
Nós não temos nada.
Sim, queremos olhar para tudo isto na tevê. Não conseguimos, queremos, desligar. Lembro-me até hoje, quando da queda das torres gêmeas em Nova Iorque: a repetição incessante da mesma imagem, da mesma cena girando em volta da mesma partícula condensada de tempo, o tempo do impacto do avião no prédio, sendo mostrada incessantemente, como se a imagem quisesse se projetar e impactar incessantemente, tanto no prédio quanto nas nossas retinas - e como queríamos, muitos, que assim fosse. Como animais que se paralizam quando olham para um farol de carro: é a fascinação que vem misturada com o terror e o medo.
O medo nos faz ser temerários, nos faz querer ser temerários - ou então nos paraliza. E quem foi que disse que a coragem, esta "virtude", "excelência" tão antiga, não é ter medo? Coragem pode ser, mesmo tendo medo, escolher não agir de acordo com ele. Entre o medo e a temeridade.
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