sábado, 20 de junho de 2009

Pegadas do Buda


Os detratores da Wikipedia que me perdoem, mas ela é fundamental.

Concordo que não fornece informações acuradas para uso científico, técnico e acadêmico, mas ela é uma excelente fonte de "primeiras informações", aquele tipo de dado que você vai usar para fazer uma pesquisa mais profunda, depois do café com cardamomo.

Foi graças a ela, por exemplo, que encontrei a palavra petrosomatoglifo, e agora posso entrar no assunto que me fez chegar a tal paroxítona: as tais de pegadas do Buda, que não deixam de ser petrosomatoglifos.

Buddhapada são os primeiros símbolos daquilo que seria uma nova "religião" mundial, o budismo. Como o peixe (ikhthys) do cristianismo primitivo, é pouco usado e conhecido atualmente, embora esteja em vários templos e estátuas em vários países - e apesar de eu ter comprado um pequeno buddhapadinha no Busshinji, para dar de lembrança a um amigo.

(Mas, para ter uma idéia, um dos monges zen en passant não reconheceu o que era aquilo, confundindo com um símbolo da sorte japonês, como o sapinho verde ou o passarinho azul.)

E, como o peixe, acho um símbolo muito mais elegante e interessante do que os símbolos comuns, seja a cruz ou a roda de oito eixos. O budismo, evidentemente, tem uma simbologia imensa - o que não nos devia nos surpreender, com 2600 anos de história qualquer coisa pode e deve ter uma simbologia imensa. Alguns são mais conhecidos, outros menos. A flor de lótus e a já mencionada roda fazem parte dos primeiros, enquanto que o guarda-sol e o casal de peixes dourados fazem parte dos segundos.

As pegadas do Buda apontam, simultaneamente, para a presença e para a ausência.

Pessoalmente eu posso entender o sentimento da presença. Ele está presente em várias formas, sejam religiosas ou não. Afinal, mesmo que Freud tenha sido - graças a D'us - um ateu empedernido (ou no dito mais bonito de Gay um "judeu sem D'us"), os devotos psicanalistas ainda vão em peregrinação à casa do pai da psicanálise. Freud já morreu, ele não está lá, e todos sabem disso; mas a expectativa de pisar naquele chão, de sentar na cadeira dele, de tocar nas suas estátuas, preciosidades arqueológicas que ele mantinha às vistas de seus pacientes - inclusive uma estátua antiquíssima do Buda - e, maravilha das maravilhas, deitar naquele divã e quem sabe, quem sabe...

Isto é aura. Ou seria mana? Levi-Strauss chama de mana aquele poder "simbólico" que emana de figuras com poder... simbólico, me faltam as palavras. Um xamã teria mana. Freud teria mana. Mana é o poder que emana, para usar um trocadilho hipnagógico, pronto.

Pisar no mesmo chão que Fulano pisou, sentar na mesma cadeira que Sicrano sentou, comer do mesmo pão - a estas alturas irreconhecível no meio do mofo - que Beltrano comeu... vai dizer que, dependendo do Fulano, Sicrano e Beltrano não dá um friozinho na barriga? (No caso do pão pode ser intoxicação alimentar.)

Pode ser Freud, Buda, _______ (preencha com uma personalidade de sua preferência), ou aqueles amores da nossa vida... aqueles que ficamos remoendo depois de acabados, e estranhamente não fazemos nada a não ser remoer e querer ver os mesmos lugares - aqui ele passou a mão na minha e nossos olhos se encontraram como se o mundo tivesse sido criado naquele momento (enquanto você passa a mão pela areia da praia, como se a areia fosse trazer aquilo tudo de volta)...

Não estou querendo dizer que as pessoas cavavam, em rochas, réplicas do pé de Buda esperando trazer o Buda-amor-de-suas-vidas de volta. Mas eu sei que amores não estão somente distribuídos "eroticamente". Os desígnios da transferência são amplos. Respeito e veneração - ah, a etimologia não é tola! - têm suas raízes no amor.

A questão é: a casa de Freud é uma casa muito comum e vulgar, como todas as outras, até você saber que a casa de Freud é A Casa De Freud (se você for psicanalista e/ou tiver qualquer relação de respeito ou veneração - arrá! - pelo mesmo). Estes galpões cercados de mato e arame farpado velho foram, 50 anos atrás, um campo de concentração onde morreram milhares de pessoas - oh!. Esta capelinha minúscula e mal-iluminada como qualquer outra está construída em cima do lugar em que Jesus foi crucificado - ah!. Ad nauseam.

A presença de um ideal torna um lugar mais sagrado que outros, para muitos. A pegada de um Buda santifica, torna mais venerável - hum... - um lugar, especialmente se acredita-se que a pegada é, de alguma forma, verdadeira, e não somente uma escavação em pedra. Olha, o Buda esteve aqui, falou aqui, sentou aqui, e pisou aqui; e eis aqui a marca.

Há, claro, várias outras camadas de sentido das pegadas do Buda, que não ouso ir mais fundo por preguiça e desconhecimento. No zen, quando nos prostramos em diversas situações - em rituais, no cumprimento a um roshi, etc - apoiamos a cabeça no chão e levantamos as duas mãos do lado do cabeça, para que possamos receber os passos de Buda sobre elas. Deixamos que Buda pise em cima de nós, nos use para não sujar os pés.

Eu vos digo que, se dependesse das minhas prostrações, Buda não iria muito longe: estaria apertado para ir no banheiro, ou para fazer um lanchinho na geladeira. Sugiro que ele procure uma escola mais prostrativa. Isto é, se ele quiser andar muito: fora isto, estou à disposição.

Mas aí então chegamos à ausência. Buda não precisa ir muito longe, com ou sem prostrações, pois ele já foi embora - para todo o sempre - e não volta. Não há promessa de retorno. Parinibbana e pronto. "Mãe, para onde foi a vovó?" "Ela foi viajar e já volta." Besteira; contudo, ei-nos como essa criança. Ananda chora - um senhor já idoso chora - preocupado com o futuro de seus irmãos, depois da ida do Tathagatha. Quem vai cuidar de nós? Sejam vocês mesmos a vossa luz, o vosso farol, eis que responde o Buda, a morrer.

Seguindo os passos de Buda: ele trilhou esta senda, e cuidadosamente seguimos pisando nos seus passos. Ele é a nossa luz, o nosso farol. Então ele dá o último passo, e zóim, finit, para nunca mais. Acabaram-se as pegadas. Preservamos este último passo com cuidado - quem sabe ele nos possa indicar para onde ir... Diz-nos que agora somos nosso próprio farol. Ele morreu. Ele pisou aqui, e nunca mais pisará, e as pegadas se apagam na areia da praia, se não forem gravadas em pedra.

Ele nunca mais pisará. Cadê o Buda?

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