sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Mora na filosofia

(....) Vou, então, responder ao teu problema, mas não sem que antes te aconselhe como deves moderar esse apetite ardente de que te vejo possuído, não vá ele, em vez de benefício, ser nocivo à tua formação. Repara que as questões não devem ser estudadas desordenadamente, nem convém tentar abarcar tudo de uma só vez; é gradualmente que chegarás à totalidade de nossas teorias. Importa também que não te esforces para além das tuas capacidades, nem tentes abarcar mais do que a tua preparação de momento te permite. Em suma, consagra-te ao estudo, não de tudo quanto te interessa mas sim de tudo quanto estás habilitado a entender. Se não desanimares, virás a conhecer tudo que desejas, pois quanto mais conhecimentos o espírito absorve tanto mais capacidade vai adquirindo.

Ainda guardo na memória um preceito que ouvi a Átalo nos tempos em que frequentava a sua escola (onde eu era sempre o primeiro a chegar e o último a sair); até mesmo durante os passeios do mestre eu o aliciava à discussão de um ou outro problema, aproveitando-me do facto de ele estar sempre pronto a ir ao encontro dos interesses dos seus discípulos. Dizia Átalo que "o docente e o discente se devem unir num propósito comum: o primeiro, ser útil ao discípulo, o segundo, tirar benefício do convívio com o mestre." [sic] De facto, quem convive diariamente com um filósofo obtém sempre algum benefício: ou o seu caráter se aperfeiçoa, ou se torna mais apto a aperfeiçoar-se. O poder da filosofia é tal que beneficia inevitavelmente não só os iniciados, mas até os que a conhecem ocasionalmente. Quem se põe ao sol, ainda que não seja essa a intenção, acaba por ficar bronzeado; a quem entra numa perfurmaria e lá se demora algum tempo comunica-se-lhe um pouco do cheiro característico do local; do mesmo modo, quem convive, mesmo distraidamente, com um filósofo aprende sempre qualquer coisa de útil. Repara que eu digo "convívio distraído", e não "hostilidade preconceituosa". [Negrito meu]

"Essa está boa! Se calhar não conhecemos casos de frequentadores, e por muitos anos, de escolas filosóficas que nem superficialmente sofreram a mínima influência!" [sic] Claro que conhecemos frequentadores obstinados e assíduos, até; mas a esses chamo eu "hóspedes" dos filósofos, não "discípulos". Há quem vá à escola apenas para ouvir, mas não para aprender, tal como se vai ao teatro pelo prazer de escutar um belo discurso, uma bela voz ou uma bonita peça! Uma grande parte dos frequentadores das escolas filosóficas vai lá apenas para passar o tempo. Não o faz para aprender a defender-se de algum vício, para interiorizar alguma lei moral que conduza ao aperfeiçoamento do caráter; vai lá apenas pelo prazer de ouvir. Várias pessoas levam consigo o bloco de apontamentos, para anotar, não pensamentos, mas frases que depois repetem sem proveito para ninguém, do mesmo modo que as ouviram sem proveito próprio. Algumas contudo, entusiasmam-se com as máximas sublimes, ficam mesmo inflamadas, de rosto e de espírito, de paixão pelos oradores, numa excitação semelhante ao efeito das flautas sobre os eunucos frígios, que ficam fora de si como se por ordem divina. A tais pessoas, o que as arrebata e excita é a beleza dos pensamentos, e não a harmonia de palavras ocas. Ao ouvir uma enérgica dissertação contra o medo da morte ou uma corajosa diatribe contra a fortuna sentem de imediato o desejo de pôr em prática o que ouviram.
(Lúcio Aneu) SÊNECA, o novo; Cartas a Lucílio, carta 108, tradução portuguesa de J. A. Segurado e Campos

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