terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Sobre "eu"

Esquema desenhado por Freud, mostrando a disposição das instâncias no aparelho psíquico

Longa postagem, escrita a um terceiro, sobre a noção de "eu". O trecho de Bettelheim vale a pena.

[....] seguindo a nossa conversa sobre o "eu" na psicologia, aqui vai um trecho do livro do Bruno Bettelheim, Freud e a alma humana, em que ele critica extensivamente a tradução americana dos escritos de Freud, como apropriação da psicanálise pelos médicos. Os colchetes são meus.

Somente o desejo de perceber a psicanálise como especialidade médica pode explicar por que três dos novos conceitos teóricos mais importantes de Freud foram traduzidos não para o inglês, mas para uma linguagem cujo uso mais corrente, hoje, talvez seja a de redigir receitas médicas. Freud conceituou a organização da psique [algumas páginas antes B. discutia a tradução de seele e seelisch - alma e "anímico", termos que Freud usa (como seelisch apparat, aparato psíquico) - como mental ou psíquico] dividindo o seu funcionamento nas áreas do consciente, do pré-consciente e do inconsciente. Os processos psicológicos que ele examina são pessoais e internos [psicanálise como "introspecção"]. Ao denominar dois dos conceitos, Freud escolheu palavras que estão entre as primeiras usadas por toda criança alemã. Para referir-se ao conteúdo desconhecido, inconsciente, da mente, escolheu o pronome pessoal es (em inglês it, pronome pessoal neutro na 3 pessoa do singular) e usou-o como substantivo (das Es). Mas o significado do termo the it só adquiriu seu total impacto depois que Freud o usou em conjunto com o pronome ich (em inglês I), usando-o também como substantivo (das Ich). Seus significados intencionais encontraram expressão clara no título do livro - Das Ich und das Es - no qual definiu esses dois conceitos, pela primeira vez, como contrapartes recíprocas. A tradução desses pronomes pessoais para seus equivalentes latinos - o "ego" e o "id" - em vez dos ingleses I e It converteu-os em frios termos técnicos que não suscitam qualquer associação pessoal. Em alemão, é claro, os pronomes estão dotados de profunda significação emocional, pois os leitores usam-nos durante a vida toda; a escolha cuidadosa e original de palavras por Freud facilitou a compreensão intuitiva do seu significado.

Nenhuma palavra possui conotações maiores e mais íntimas do que o pronome "Eu". É um dos vocábulos mais frequentemente usados em qualquer língua falada - e, mais importante ainda, é a mais pessoal das palavras. Traduzir Ich como "ego" é transformá-la em jargão que deixa de transmitir o envolvimento pessoal que há quando dizemos "eu" ou "meu" - para não mencionar nossas lembranças subconscientes da profunda experiência emocional que tivemos quando, na infância, nos descobrimos a nós próprios ao aprender a dizer "eu" [Lacan que o diga, com o "estádio do espelho como formador da função do eu"]. Ignoro se Freud conheceria a afirmação de Ortega y Gasset de que criar um conceito é deixar a realidade para trás; mas ele tinha certamente consciência dessa verdade e tentou evitar este perigo até onde lhe foi possível. Ao criar o conceito de Ich, vinculou-o à realidade usando um termo que tornava praticamente impossível marginalizá-la. Ler ou falar sobre o Eu obriga uma pessoa a olhar-se introspectivamente. Em contraste, um "ego" que usa mecanismos nitidamente definidos, como o deslocamento e a projeção, para atingir seus fins na luta contra o "id", é algo que pode ser estudado de fora, observando-se outros. Com esta tradução imprópria e - no que tange à nossa reação emocional a ela - francamente enganadora, uma psicologia introspectiva converte-se numa psicologia behaviorista, que se dedica à observação a partir do exterior. E é exatamente assim que a maioria dos americanos vê e usa a psicanálise. [rixa da psicanálise européia contra a americana; Lacan critica o uso adaptativo - fortalecedor do "eu" - das escolas recentes de psicanálise americana]

A palavra "ego" era usada na língua inglesa de múltiplas maneiras, muito antes de os tradutores de Freud apresentarem-na como conceito psicanalítico. Esses usos, que ainda são parte da língua viva, são todos pejorativos, como "egoísmo", "egoísta" e "egotismo". (Uma expressão de gíria de origem mais recente - "ego trip" - também é pejorativa.) Isso é igualmente verdadeiro de seus cognatos alemães - o substantivo Egoist e o adjetivo egoistisch. Freud, como todas as pessoas de fala alemã, estava familiarizado, evidentemente, com a conotação depreciativa de conduta interesseira que a raiz "ego" suscita.

Eu acho que a psicanálise oferece uma das mais vívidas discussões sobre a questão do eu - sua gênese e suas vicissitudes. A razão é, de certa forma, simples. A história da psicologia científica, desde o seu começo no final do século XIX até hoje, segue um padrão simples: introspecção versus observação, herança da dicotomia filosófica em voga no começo da psicologia como ciência. O objeto de estudo da psicologia, como te disse em uma mensagem muito tempo atrás, nunca foi realmente "delimitado": cada escola tem o seu, de preferência excluindo o da escola "oposta". Não dá para dizer, portanto, que a psicologia estuda a alma ou a mente humana, como o nome poderia sugerir, a não ser que possamos definir "psique" de uma forma que abranja psicanalismo, behaviorismo, humanismo - as três "ondas" principais que varreram a psicologia - e os diversos outros.

Mas há coisas interessantes. O comportamentalismo atual pensa a "consciência" como comportamento operante "internalizado" - um comportamento operante que reflete e atua sobre comportamento operante. O senso de "eu" seria uma forma de comportamento verbal "internalizado". O comportamentalismo assume o pressuposto corajoso de excluir qualquer "interioridade" do seu discurso - o que vale é o que pode ser observado.

As diversas escolas de psicoterapia foram, de certa forma, uma resposta à psicanálise. Aliás, a psicanálise mudou o quadro da psicologia como um todo, este Freud safado. Os primórdios da psicologia científica - cientifica é importante aqui, houve muita "psicologia filosófica" durante séculos - começaram com uma busca das leis do psiquismo. A psicofísica de Fechner e o laboratório de psicologia experimental de Wundt foram o estopim para o começo da psicient. As psicoterapias, contudo, tiveram todas elas um parentesco - mesmo que renegado ou dissimulado - com a psicanálise. Mesmo que tenham nascido da crítica da psicanálise, elas reformulam conceitos e protocolos psicanalíticos. É uma situação deveras esquisita, pois a psicanálise nasce do campo da medicina e da filosofia, com o toque de gênio do Freud, e as psicoterapias se apóiam na psicologia. De certo modo, qualquer escola psicológica pode gerar uma forma de psicoterapia - e consequentemente uma visão de homem. [Ou vice-versa, não é?] Assim, as maiores discussões sobre "personalidade" surgem das escolas psicoterápicas - talvez porque sejam elas as que lidam com as pessoas em maior escala, e não com fenômenos psicológicos como atenção, atitude ou memória.

Tomando o exemplo da gestalt-terapia, que define o "ego como fronteira de contato entre o organismo e o meio", e as neuroses como "deformações ou cristalizações" nesta fronteira de contato. De certo modo, é uma diferenciação pequena do conceito freudiano de eu como uma especialização do isso em contato com a "realidade", com um ponto de vista filosófico mais atual, com o surgimento da cibernética e da fenomenologia.

O trecho acima, do Bruno, é importante neste sentido, de tornar o conceito freudiano mais naïve, mais inocente, menos especializado. O eu da psicanálise é o eu que diz eu, tomado na teoria como uma "instância" do "psiquismo", mas todos sabemos do que se trata. Este é um traço que admiro nos grandes filósofos: quando se conceitua sobre impressões, idéias, afetos, todos sabemos do que se trata. O que eles farão e dirão sobre isto é o que é muitas vezes impensado.

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