segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Mar de ar


Não nos damos conta, mas vivemos em um mar de ar. Vi as árvores encalpeladas, dobrando-se ao jorro abundante de grosso vento, como algas a dançar na escuridão submarina, e percebi. Este ar úmido que penetra nos nossos pulmões, mas intimamente do que qualquer pessoa jamais penetrará, flui como a água fértil nas guelras de um ser marinho. Nossos pássaros são peixes. Há mais peixes no mar do que pássaros na terra? É mais fácil voar na água do que nadar no ar? Nós, nós somos os camarõezinhos se arrastando no fundo pedregoso. Um amigo complementa: "com muita merda na cabeça".

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Quatro votos do bodhisattva

眾生無邊誓願度
煩惱無盡誓願斷
法門無量誓願學
佛道無上誓願成

Seres sem limites prometo levar à outra margem;
aflições intermináveis prometo extinguir;
portais-do-dharma, imensuráveis, prometo estudar;
o Caminho do Buddha, inigualável, prometo realizar.

Notinhas
度 - "levar à outra margem", da margem do samsara para a margem do nirvana. Traduz-se também como paramita.
煩惱 - muitos significados. Ver aqui (inglês, login guest, sem senha).
學 - "estudar" envolve algo além do sentido acadêmico; trata-se de aprender e apreender, com corpo e mente, assim como aprendemos a andar.
法門 - termo clássico usado para os vários ensinamentos buddhistas.

Uma tradução livre dos "quatro votos". Atentem que todos os votos são "paradoxais" em sua formulação: como é possível extinguir o que nunca termina? Aqui, eles são como Aquiles e a tartaruga: uma corrida ao limite, nunca alcançado. Isto é desanimador para você? Mas porque seria? Se você, ao nascer, pensasse antecipadamente na quantidade de ar-dentro-ar-fora que tem de fazer (aprox. 250 milhões em 80 anos), não ficaria um tanto desgastado e desesperado?Mas nós não ficamos: inspiramos e expiramos a todo momento, sem pensar a respeito. Ficamos desgastados e desesperados com outras expectativas. Quando o ar nos falta, porém, onde elas estão?

Os quatro votos são assim: uma promessa e uma aposta, aposta de que mesmo que seja impossível e infinito, eu vou até o fim. Mesmo que não tenha potinho de ouro atrás do arco-íris, mesmo que não sejamos recompensados pela nossa virtude. Um bodhisattva desce aos "infernos" para "ajudar" os seres, mas esta descida não deve ser vista como um ponto a mais no currículo bodhisátvico. "O que isto me trará de bom?" é a pergunta que automaticamente invalida o bodhisattva, onde quer que ele esteja.

É esta mesma mente que vê o zazen como um meio e o Despertar como um fim, e que se irrita ou não compreende os quatro votos. Os dois, zazen e Despertar, estão muito entrelaçados, evidente; resta, porém, uma pergunta na multidão: depois do Despertar, então, não é necessário mais zazen (já que conseguimos o que queríamos)? A resposta não pode partir de mim, ela parte de Dogen: a prática é infindável, a (com)provação sempre se aprofunda mais e mais. Isto te deixa tonto?

Verso do moppan


生死事大
無常迅速
光陰可惜
時不待人

Vida e morte são grandes questões;
tudo passa rápido.
Gastar dias e noites é uma lástima;
o tempo não espera por ninguém.

Esta é uma tradução livre do verso recitado no toque do moppan, a plaquinha de madeira da foto, encontrada em um centro de prática zen. O verso é recitado no final do dia, ao término do último período de zazen. No começo tal admoestação para "não gastar a vida" me irritava: viver a vida não é joga-la fora. Do que essa gente tinha medo ou pressa? Agora, no entanto, ouço apenas uma voz firme, porém carinhosa, que me diz "a hora é agora".

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A função de um centro zen


Devo ser a vigésima sétima pessoa que posta este texto, nas últimas semanas. No problemo; o texto é bom e a autora é fabulosa. Só não é mais fabulosa, pois não a conheci pessoalmente, uma pena. Charlotte, esta é uma parte da minha homenagem a você.

A Função de um Centro Zen
de uma palestra de Joko Beck

Hoje eu quero falar sobre a função de um Centro Zen. De uma maneira geral, podemos dizer que é para apoiar a prática; e é claro que é verdade. Mas temos um monte de ilusões sobre Centros Zen como também temos sobre os professores. E uma coisa que tendemos a pensar é que um Centro Zen deveria ser um lugar muito agradável para mim – em outras palavras, deve ser não-ameaçador (risos). Eu acho que um bom centro deve ser bastante ameaçador às vezes! Não é função de um centro cuidar do seu conforto ou da sua vida social. Com isso não quero dizer que não devemos ter eventos sociais – eu acho que são ótimos – mas não são a principal função de um centro. A função de um Centro Zen não é prover as pessoas uma vida social. Não têm necessariamente o papel de fazê-las sentirem-se bem, e não é para fazê-las sentirem-se especiais.

Essencialmente, um centro é uma ferramenta poderosa para ajudar-nos a despertar. Como uma sangha praticando em um centro, precisamos, sim, apoiar uns aos outros, mas a natureza desse apoio pode não ser exatamente o tipo de apoio que é frequentemente visto num escritório. Você sabe, o namorado de uma moça a deixa – “ô, coitadinha! Sabe, quando o MEU namorado me deixou …. ” (Risos) e lá vamos nós! Há uma atitude de “somos todos vítimas juntos nessa” que NÃO é apoio. Quanto mais praticamos, bem, tanto menos aquele tipo de apoio falso é o que se encontra num centro bom.

Deve ser um lugar, então, que nos dá apoio, sim, mas que também nos desafia, e nesse sentido somos todos professores uns dos outros. Alguns dos ensinamentos mais poderoso em um Centro Zen nada tem a ver com o professor, às vezes o ensino vem de uma outra pessoa, vindo diretamente da experiência dessa pessoa. Para ser honesta, estar ciente do que a prática real é, e compartilhá-la com os outros – é isso que torna um centro um tipo de lugar diferente para se estar.

Infelizmente, Centros Zen tendem a ser um pouco ego-perpetuantes: nós queremos que eles sejam maiores, melhores, mais importantes que o centro do outro cara, com certeza! Há correntes de ego muito sutis que podem circular em um Centro Zen, como em qualquer outra organização se não tivermos um cuidado especial.

E algumas reflexões sobre a sangha: um ponto é crucial – quanto mais tempo as pessoas vêm praticando, menos importante deve ser o papel externo delas. E por isso eu não quero que as pessoas que vêm praticado por muito tempo presumam que elas sempre serão monitores – às vezes, sim, claro, mas quanto mais alto o aluno, mais eu quero que a sua influência seja sentida através da sua prática, e através de sua vontade de não parecer importante; e de deixar os alunos mais novos começarem a assumir algumas das posições externamente visíveis.

A marca de alunos seniores é estarem trabalhando quando ninguém sabe que eles estão lá. Eu vejo pessoas trabalhando no escritório do Centro em horários estranhos, às vezes eu estou voltando das compras e eles estão trabalhando duro. Isso é um sinal de prática madura, fazer o que deve ser feito mantendo a nossa própria importância fora disso.

Pessoalmente, eu estou tentando ir por esse caminho, minimizando a enorme importância dada ao papel do professor. E eu quero que isso se aplique a todos os alunos mais velhos. Então, se você sente que não está tendo a oportunidade de fazer o que você costuma fazer, ÓTIMO! Então você tem algo muito bom com o que praticar.

Outra marca de um bom Centro Zen é que ele nos sacode como um todo; as coisas não acontecem da maneira como gostaríamos, de acordo com as nossa fantasias. Assim, em nossa chateação, acabamos retornando à base da prática – que é, tanto quanto eu posso colocar em palavras, assumir mais e mais a posição de um observador em nossas vidas.

Com isso quero dizer que tudo em nossa vida vai continuar a ocorrer – os problemas, as dificuldades emocionais, os dias agradáveis, os altos e baixos, que são aquilo em que consiste a vida humana -, mas é a capacidade de não ser pego – de apreciar o que está acontecendo quando se é “bom”, de ter tranqüilidade quando se é “ruim” e de observar tudo isso, que é um trabalho contínuo.

A marca do amadurecimento da prática é simplesmente a capacidade, mais e mais e mais, de perceber o que está acontecendo e não ser fisgado por ele. Fácil falar, mas provavelmente 15 a 20 anos de prática rígorosa serão necessários antes que nós sejamos dessa forma uma boa parte do tempo.

E isso não é o estágio final. Quando não há nenhum objeto, nenhuma pessoa, nenhum evento, nenhuma coisa no mundo que me fisga, no qual eu esteja preso – quando não há nenhum objeto e nenhum self observando -, então há uma virada para o quê, para dar-lhe um nome, seria o estado iluminado.

Nunca conheci ninguém que eu senti que havia alcançado isto, mas algumas pessoas têm se saído bem e, se você tiver a sorte de encontrar uma pessoa assim, você sentirá a diferença que há em alguém que não é fisgado pela vida (necessitado, desejando ardentemente algo ou alguém, insistindo que a vida seja de uma certa maneira) – você perceberá que tal pessoa está em paz e livre.

Estas são as pessoas que são uma influência curativa e benéfica sobre toda a vida que está perto deles. Eles não precisam fazer nada – a cura vem da maneira como eles são. Essa transformação é o que queremos da nossa prática.Temos muita sorte de ter essa oportunidade nesta vida. Vamos aproveitá-la e fazer o nosso melhor.

- tradução: Monja Isshin e Muriel Paraboni

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Fé e crença

A distinção entre fé e crença aponta para o fato de que uma religião historicamente dada e institucionalmente formulada sempre se refere a uma convicção responsavelmente assumida e vivida. Caso contrário, religião e fé tornam-se mero costume exterior ou dever imposto. Somente em experiências conquistadas pela crença se pode confirmar a fé. Por sua vez, a crença pessoal também se refere sempre a uma fé formulada, porque, caso contrário, ela não teria um lugar histórico e social; sem uma linguagem comum ela não poderia ser comunicada e não poderia confirmar-se numa vida comunitária.


Hans Zirker, filósofo e teólogo alemão

Creio que a maior analogia para se pensar esta questão de fé x crença é a linguagem. Caso você não tenha percebido antes, esta linguagem que você crê ser tão sua - afinal, é você quem a usa o tempo todo - foi transmitida e "ensinada" pelos seus pais, parentes, professores. No início, ela não tinha nada de sua. Isto, porém, não é impedimento para ela; não é por causa disto que a maldizemos e dizemos que ela é ruim por que "ela nos foi dada de forma não crítica", como uma crença. No começo, ela funciona como a crença. Cremos na linguagem de forma mágica, nos primeiros anos de vida. É preciso tempo e vida, porém, para que façamos da linguagem uma casa nossa; para que a tornemos nossa, a utilizemos da forma que nos aprouver.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Tênue Transmissão

Texto publicado no Todatsu Shinbun 5

Imagine a seguinte chamada de um jornaleco sensacionalista: “Lavador de arroz analfabeto recebe Transmissão; funcionários e monges furiosos com comportamento do abade”. Em poucas palavras, treze séculos atrás esta foi a história de Dàjiàn Huìnéng (Daikan Enō), o sexto ancestral do chan (zen) na China. Sua conclusão – incluso o belo poemeto-réplica de Enō - deixo como tarefa de casa. Adianto apenas que, para fugir dos monges enfurecidos, ele escondeu-se na casa de um caçador durantes uns bons anos, depois de ter recebido, no meio da noite densa, o manto e a tigela do velho abade, Daman Hongren (Daiman Kōnin), juntamente com um conselho: "Desde tempos antigos a transmissão do dharma é tênue como um barbante frouxo. Vá embora, rápido."

Enō viveu perto dos 80 anos, aprendeu a ler e a escrever e tornou-se um poeta e calígrafo renomadíssimo, além de um mestre zen prolífico. Algumas de suas obras sobrevivem quase intactas até os dias de hoje, e ele próprio é relembrado por nós, mesmo que brevemente, na nossa recitação das dezenas e dezenas de nomes da “Linhagem”. Sua história, com um gostinho de conto de fadas misturado com piada, é somente uma dentre várias: histórias que misturam angústia com despertar, sofrimentos e grandes alegrias, histórias de pessoas muito próximas de nós mesmos.

Tomemos Ānanda, por exemplo: o belíssimo, astuto e erudito Ānanda, o acompanhante, primo, amigo e “secretário” do Tathāgata. Acompanhando o Buddha por duas décadas como uma sombra, quem seria mais privilegiado do que ele, quem teria mais chances e oportunidades para a prática, esta prática onde amigos são tão importantes? Mesmo assim, o Tathagatha morre e Ānanda desespera-se: ele ainda não tornara-se um arhat. “Se nem um Desperto me serve de algo, devo ser um caso perdido”, imagino Ānanda ruminando, num choro agridoce a morte do amigo. Não é difícil sentir Ānanda vivo, aqui do nosso lado.

Ou então também há, como de praxe, histórias de grandes apostas; riscos desmedidos para ir atrás de algo. Numa época em que uma travessia marítima não era um cruzeiro turístico, Bodhidharma e o jovem Dōgen cruzaram mares, tanto para buscar quanto para levar o “verdadeiro dharma”. Admiramo-nos de sua coragem, ao mesmo tempo em que nos esquecemos que esta tenacidade, esta firme resolução de atravessar montanhas e mares, não é tão nossa desconhecida.

Seguem as histórias, seguem os exemplos, segue a familiaridade. Aprendemos a apreciar os “grandes feitos” dos outros a partir da nossa própria experiência. Para quem nunca pensou em sentar em zazen, as decisões e dramas de Dōgen, Bodhidharma, Ānanda e Enō podem parecer uma grande bobagem, uma grande “perda de tempo”. Se, porém, ao escutarmos uma história desta, sentimos um leve calorzinho de reconhecimento, sabemos de quem estamos falando: não estamos falando de pessoas que viveram e morreram séculos atrás, estamos falando sobre nós mesmos – como se o sangue de buddhas e ancestrais estivessem correndo nas nossas veias, esquentando os nossos pés e mãos.

Quanto mais praticamos, mais vemos a nossa fragilidade, a facilidade com que hesitamos e recuamos, os nossos pequenos passinhos de bebê. Mais apreciamos a força de vontade de algumas pessoas que fizeram grandes apostas; mais apreciamos a raridade que é encontrar um dharma que viceja verdejante. A gratidão é inevitável. Temos bons modelos onde nos fiar.

Mas não paremos por aí. Onde poderíamos ver apenas nomes esquisitos, de difícil pronúncia, amarelecidos pelo tempo, é preciso que nos enxerguemos. Todos eram pessoas como nós, nascidos de pai e mãe, bebedores de leite. De suas vidas, tirantes suas carreiras como professores e mestres, sabemos quase nada: alguns casos e crônicas e frases e ditos e escritos. O resto, “desnecessário”, perde-se - e talvez seja útil que assim o seja. Podemos encontrar nas entrelinhas, porém, as incontáveis histórias que ficaram e ficam por contar: as nossas. Não tão memoráveis, ou tão heroicas, e provavelmente fadadas à maré do esquecimento, como os nomes de nossos bisavós. Estas incontáveis vidas todas são, contudo, o solo fecundo onde se enraíza a prática, onde floresce o Despertar. Sem elas, a história de todos estes grandes homens e mulheres são folhas secas jogadas ao vento.

É preciso um esforço, o esforço da lembrança, para cimentar a memória efêmera – e não há nada mais efêmero do que uma lista de cem nomes. Efêmera e tênue é a transmissão: diz-se que, logo depois do seu Despertar, Shākyamuni ficou tentado a simplesmente permanecer em silêncio e usufruir a sua realização, a não ensinar o dharma - dharma tão sutil, tão difícil, tão sujeito a más interpretações. Foi preciso uma “intervenção divina” para que ele mudasse de ideia. O velho abade poderia ter ficado quieto. Bodhidharma podia ter ficado em casa, em vez de ir para o Leste. Que “chama” é esta que transmitiram, que segue contínua até os dias de hoje? Eu não sei dizer.

Enō foi acompanhado de noite, pelo velho abade, até estar a uma distância segura para seguir viagem. Logo antes do abraço final, entre recomendações, o velho abade fala: “Se você conseguir despertar a mente/coração de outra pessoa, esta pessoa não será nada diferente de mim.”

***

Os dados da história de Huìnéng, inclusive as falas do "velho abade", foram retiradas do Sutra da Plataforma, especialmente o primeiro capítulo, autobiográfico; tradução de Yampolsky, The Platform Sutra.

A descrição de Ānanda é do Denkōroku; o episódio da sua reação à morte do Buddha é relatada, de diversos modos, em vários sutras do cânon páli e sutras mahayana.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Grande dúvida

Deves duvidar profundamente, sempre e sempre, perguntando a ti mesmo o que poderia ser o sujeito que está ouvindo. Não preste atenção aos vários pensamentos ilusórios e ideias que possam te ocorrer. Apenas duvide mais, e mais profundamente, concentrando em você toda a força que há dentro de ti, sem mirar em coisa alguma e sem esperar nada em adiantado, sem pretender ser desperto e sem nem mesmo pretender não pretender ser desperto; torne-se como uma criança em teu próprio peito.

Takasui, mestre zen (rinzai?) japonês, século XVII

Não é interessante, a última frase?

Dizem que para a prática do zen é preciso uma grande confiança/fé, uma grande dúvida e uma grande determinação. Hakuin é outro mestre rinzai que enfatiza a "dúvida", especialmente na prática com kōan.

Nusuth, como diriam os handdaratas de Gethen.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

terça-feira, 24 de maio de 2011

Além da dor

Quem quer passar além do Bojador,
Tem que passar além da dor.

Ir além de: precisamos de uma clarificação. No nosso andar cotidiano passamos pelas coisas - e as deixamos para trás. As coisas "aproximam-se" e "distanciam-se". Neste aproximar e distanciar, algumas vezes dizemos que vamos "além de" algo. Ultra-passamos, trans-passamos, "para"-passamos. Deixamos para trás; nós e as coisas estamos "além".

A dor também é algo que se nos aproxima e distancia. Podemos sentir a sua aproximação e dela nos refugiar, abrigar, proteger. Sentados peri-imóveis, vemos a sua aproximação. A mão de ferro da dor nos comprime, devagar mas sem hesitação: é decidida, não duvida. Nos deixamos ficar tensos na compressão deste amplexo.

Assim estamos, então, sentados e em dor. A dor está presente: aproximou-se, porém não se distancia. Diferindo de um ponto pelo qual passamos e deixamos "para trás", a dor permanece. Se desistimos do nosso sentar, evitamos a dor - nos abrigamos dela. Mas assim vamos para além dela? Não; somente a anulamos como possibilidade de ser. Ela torna a ser quando as condições estão postas. Torna-se claro que ir além da dor, então, não é dela se distanciar como algo no mundo, como o seria ir além da árvore na esquina. "Ir além" da dor é ultrapassa-la incluindo-a.

Ultrapassar incluindo é como virar a luz da vela para iluminar a chama.

Ao sentar, sentimos a dor. Ela continua existindo, como dor, mesmo quando vamos "para além" dela. Não nos tornamos insensíveis, dela, como dor; não fugimos. Lá - aqui - ela está e continua.

É preciso a aguda e perfurante determinação para ir além da dor; é preciso uma cálida paciência para aprender a soltar, relaxando, nosso corpo da gélida mão pétrea da dor. É por isto que ir além da dor sempre foi descrito em tons heroicos; determinação e "coragem" são a marca do herói - força de leão, olhar de águia. Fora isto, ir além da dor não tem precisamente nada de heroico; é simplesmente a pura determinação de vivenciar o shikantaza em sua simplicidade.

*****

O melhor a fazer, com relação a dor durante o zazen, é: vá um pouco além do ponto que você costuma aguentar. Depois, simplesmente troque de posição, se preciso. Ficar com a dor "heroicamente" deve ser uma escolha, e não uma obrigação. Não faça mal a si mesmo, a dor é um bom sinal de algo que não está tão bem assim.

domingo, 3 de abril de 2011

Hanamatsuri



Neste próximo final de semana ocorrerá o primeiro Hanamatsuri - Festival das Flores - em Florianópolis. O primeiro cartaz trata do almoço que irá ocorrer nas dependências do restaurante Daissen durante o festival.

Segue a programação:

8: 00 horas - abertura
8:30 horas – Palavras do Presidente da Associação Nipo Catarinense – Luiz Kiyoshi Nakayama e do Monge Genshô
8:45 horas – Cerimônia cívica – Brasil / Japão
9:00 – 9:30 horas – Cerimônia religiosa em honra às vítimas da catástrofe no Japão
9:30 - 10:00 horas – Apresentação de Tai-Chi-Chuan – Dr Yu Tao
10:00 –10:40 horas – Orquestra Escola da Fundação Franklin Cascaes - Maestro Carlos Alberto Vieira
11:00 – 11:30 horas - Aikido infantil – Kawai Shihan Dojo – Fábio Sensei
11:30 – 12:00 horas – Aikido Adulto – Kawai Shihan Dojo
12:00 – 14:00 horas – Banda Hatenkoo, Desfile Cosplay, Animekê – Ricardo Hayashi
14:00 às 14:30 horas – Kenjutsu – Instituto Niten
14:30 às 15:00 horas – Apresentação de Kung Fu ( Evando Seido)
15:00 às 16:00 horas – Banda Amor a Arte
16:00 às 16:30 horas – Nantyusoran - alunos do Nihongo e membros do Shimadaiko
17:00 às 17:15 horas – Shamisen – Ryoko Fukuhara
17:15 horas – Apresentação de Taiko com o Grupo Shimadaiko
17:45 – Cortejo de enceramento com a imagem de Buda menino

No Espaço do Templo Daissen Ji

16:00 às 17:00 horas – Cerimônia do Chá – Grupo Wullin Práticas Orientais

Espaço Oficinas:

14:30 às 15:30 horas – Kenjutsu – Instituto Niten
15:00 às 16:00 horas – Oficina de Taiko com o Grupo Shimadaiko
9:00 às 15:00 horas - Origami para comunidade –confecção de Tsurus em homenagem às vítimas da catástrofe no Japão – Paula Hidemi Kaneoya, Jackson Adriano, Yuina Takase

Stands Culturais: Shodo, Nihongo, Mangá, Taiko, Softball, Reiki, Ikebana, Forja da Esapada Japonesa.

Stands de Vendas: Comunidade Zen Budista Florianópolis, Missão Jovem, Centro de Estudos Budista Bodisatva, Instituto Niten, Shiatsu MiMa, ArtBonsai, Origami, Monte Fuji, Torii, Olaria de São José, MangaNiac, Nyanco, Cerâmica Marina Takase, Sushi Seiji e Jussara, Fernando Pitinati

Stand da Secretaria Municipal de Esportes

Apareçam e façam deste evento uma primeira edição de muitas por vir!

terça-feira, 15 de março de 2011

Listas e mais listas


Um dos pontos mais atraentes e charmosos do budismo "original", theravada, é que ele é cheio de listinhas: desde as listagens mais famosas, como o Nobre Caminho Óctuplo, as Quatro Nobres Verdades, os Cinco Agregados, até listinhas mais desconhecidas do praticante comum, como as 32 marcas físicas de um Buddha (que não o deixam muito atraente, aos meus olhos) ou os 12 elos da Corrente de Originação Interdependente, e demais quetais.

O charme destas listinhas, especialmente para pessoas com um pendor para a divagação e especulação, é que elas ajudam a ajustar e a focar melhor a vista, especialmente em momentos em que a prática parece dar um nó*; aqueles momentos em que, olhando em retrospecto para a sua prática meditativa, você se pergunta: "mas então, do que exatamente estamos falando?", e tcharám! Já que o buddha Śākyamuni não se encontra para conversar pessoalmente contigo... Algumas vezes nem mesmo um amigo mais experiente está disponível.

*(São também indicadas para os praticantes iniciantes que se apaixonam demasiado pelo suposto lado paradoxal da prática do zen, por exemplo - lembre-se, d. Maria, que por trás de um paradoxo sempre há uma lógica, agachadinha.)

Em uma cultura de transmissão oral, como era a dos primórdios do budismo, a formulação de listas e a repetição de fórmulas e frases feitas eram as técnicas mnemônicas mais utilizadas. Passe os olhos nos sutras budistas mais antigos e veja por si mesmo: a fórmula que Śākyamuni utiliza para expressar o seu Despertar, por exemplo, é praticamente idêntica em dezenas de ocorrências. Algumas vezes é maçante, e em outras é elegante: ajuda a criar um discurso consistente e atraente pela sua suposta simplicidade. As mesmas técnicas são também utilizadas em livros originalmente transmitidos oralmente, como os homéricos Ilíada e Odisseia, e (segundo alguns estudiosos) em muitas partes dos livros iniciais do Velho Testamento cristão, ou da Tanakh judaica.

Estas listinhas são tão úteis - "profícuas" - quanto uma lista de compras no supermercado, ou o hábito de possuir uma agenda para anotar a hora do dentista. Alguns se orgulham de ter uma boa memória, e de não precisarem ter de apelar para recursos externos para complementá-la. Na mitologia budista, o grande memorizador era o primo, discípulo e secretário do Tathāgata, o belo Ānanda, de cuja memória puderam-se fiar as inumeráveis suturas. Podemos imaginar, contudo, que o processo tenha sido um pouco mais humano: Ānanda, o savant, tendo suas memórias complementadas pela reunião de centenas de veneráveis bhikkhus - como um grande congresso acadêmico, mas sem coffee breaks. Memória apenas por memória: a temos e a desejamos mais. De um ponto de vista budista, porém, a pergunta é: memória para quê? Para orgulhar-se da mesma, ou para mantê-la abarrotada com as inevitáveis superfluidades da vida? Se estamos em déficit de algo, contemos com as facilidades que possuímos: tudo depende do uso que poderemos dar, à memória e às facilidades.

Ninguém exige, ou deveria exigir,de um praticante budista que ele memorize listas e coleções de itens; o valor delas reside somente em seu poder de "poder ver melhor", de ter mais clareza na prática cotidiana, e depende de circunstâncias e contextos. Para um professor ou instrutor tal necessidade é maior do que para um praticante leigo: mas não porque aquele sabe mais e, portanto, é "melhor", e sim para ampliar um repertório de ferramentas a ser utilizado parcimoniosamente, em vista de tal ou tal pessoa em tal ou tal lugar. Em vários momentos de seus sutras mais antigos, e em algumas formulações mahayana, Śākyamuni afirma o valor de ter uma "visão correta", um ponto de vista "correto" sobre o dhamma, mas para logo depois, então, reassegurar: o apego a um ponto de vista específico é tão improfícuo, para o Despertar, quanto a ignorância.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Próximos eventos da CZBF

Este ano a Comunidade Zen-Budista de Florianópolis estará de vento em popa: todos aqueles que quiserem ter a experiência de fazer um sesshin - um retiro - ou um zazenkai - um dia de prática - terão oportunidades de sobra.


e nos dias de carnaval um sesshin, com a presença mais que especial do roshi Saikawa. Ótima oportunidade: embora residente em São Paulo (Busshin-ji), ele está sempre para lá e para cá, e tê-lo conosco é um privilégio, embora breve.

Confira sempre a página do Daissen-ji e fique de olho nos próximos!

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Em poucas palavras


Meu amigo,

e quem disse que ler Dōgen é necessariamente difícil, coisa para literatos & eruditos & Despertos & afins? É assim que ele conclui o seu Zazengi, depois de dar intruções para o zazen shikantaza que são repetidas ipsis litteris 800 anos depois:

坐禪は習禪にあらず
大安樂の法門なり
不染汚の修證なり

zazen wa shūzen ni arazu,
dai anraku no hōmon nari,
fu senna no shushō nari.

"Zazen não é habituar-se ou aprender a fazer zen [dhyāna, "meditação"]; é o portal-do-dharma da grande paz e felicidade, é a prática-prova imaculada e pura."

"Prática-prova" é a minha inocente tradução de um dogenismo: ele coloca lado a lado "prática" (修 shu) - a prática budista, a prática da meditação virtude etc. - e "prova, verificação" (證 shō) - neste caso a "verificação" por si mesmo do Despertar. Não se trata de prática para alcançar o Despertar, e não se trata de um Despertar depois da prática.

Mensagem a um amigo

Você diz achar engraçado, ou esquisito, quando eu te digo que, de alguma forma, você já experimentou o que eu costumo - lástima! - chamar de "zazen verdadeiro".

(Lastimo por saber que, falando assim, vem logo à cabeça "zazen falso", o que não existe. Ou há zazen ou não há zazen; zazen ou não zazen, eis a questão. O "zazen verdadeiro" serve apenas para delinear os momentos, raros ou não, em que não estamos simplesmente sentados tentando fazer zazen. Mesmo estar "sentado tentando fazer zazen" já é fazer zazen, porém.)

Não se admire: não estou falando de algo muito além algures, não estou falando de algo especial e do qual eu tenho testemunho e propriedade. Se você usar a sua cabeça e observar bem, verá por si mesmo e pela sua prática que o tal do "zazen verdadeiro" não é difícil de ser alcançado: não é um prêmio ao longo de um árduo e esforçado caminho, algo ao ser alcançado por último.

Olhe! Observe! Você sabe do que eu estou falando. Mesmo que tenha sido por um brevíssimo momento, em qualquer lugar que seja, você já o vivenciou. Mesmo que você não tenha compreendido muito, ou sequer pensado a respeito, sem que você queira ele já se diluiu e está lá, sombranceiro, junto com o seu zazen. Sem querer, ele se tornou uma lembrança difusa, até mesmo inconsciente, mas uma lembrança costurada e amarrada profunda e intimamente. Se você deixar, esta vivência te arrastará novamente para ela. Se tentar ir atrás, não a alcançará jamais.

Vivenciar este "verdadeiro zazen" não é sinônimo de tarefa cumprida. É, na verdade, o começo. Quando você consegue discernir, por si mesmo, que estes delicados e raros momentos não estão sobre a sua jurisdição e controle, é um bom sinal - eles são tão fugidios e escorregadios como um sabonete redondo molhado. O máximo que você pode fazer - uma das possibilidades - é continuar com o zazen, o real zazen sem objetivos - nada a procurar, nada a encontrar.

Neste sentido é que eu digo a você que não se trata de algo especial, ou o tal do prêmio merecido. Se você for uma pessoal "normal", o que creio que é o caso, não se trata de nada que vai transtornar ou mudar radicalmente a sua vida. É bem capaz que, alguns poucos minutos depois de levantar do tal "verdadeiro zazen", você se veja novamente com a sua irritação, com a sua raiva, com o seu querer demasiado apaixonado. A corrente continua fluindo, meu caro; não se engane achando que há uma fácil panacéia. É esta discrepância entre a sua vida cotidiana e o "verdadeiro zazen" que é o terreno da nossa prática cotidiana. A prática de cada um.