Texto publicado no Todatsu Shinbun 5
Imagine a seguinte chamada de um jornaleco sensacionalista: “Lavador de arroz analfabeto recebe Transmissão; funcionários e monges furiosos com comportamento do abade”. Em poucas palavras, treze séculos atrás esta foi a história de Dàjiàn Huìnéng (Daikan Enō), o sexto ancestral do chan (zen) na China. Sua conclusão – incluso o belo poemeto-réplica de Enō - deixo como tarefa de casa. Adianto apenas que, para fugir dos monges enfurecidos, ele escondeu-se na casa de um caçador durantes uns bons anos, depois de ter recebido, no meio da noite densa, o manto e a tigela do velho abade, Daman Hongren (Daiman Kōnin), juntamente com um conselho: "Desde tempos antigos a transmissão do dharma é tênue como um barbante frouxo. Vá embora, rápido."
Enō viveu perto dos 80 anos, aprendeu a ler e a escrever e tornou-se um poeta e calígrafo renomadíssimo, além de um mestre zen prolífico. Algumas de suas obras sobrevivem quase intactas até os dias de hoje, e ele próprio é relembrado por nós, mesmo que brevemente, na nossa recitação das dezenas e dezenas de nomes da “Linhagem”. Sua história, com um gostinho de conto de fadas misturado com piada, é somente uma dentre várias: histórias que misturam angústia com despertar, sofrimentos e grandes alegrias, histórias de pessoas muito próximas de nós mesmos.
Tomemos Ānanda, por exemplo: o belíssimo, astuto e erudito Ānanda, o acompanhante, primo, amigo e “secretário” do Tathāgata. Acompanhando o Buddha por duas décadas como uma sombra, quem seria mais privilegiado do que ele, quem teria mais chances e oportunidades para a prática, esta prática onde amigos são tão importantes? Mesmo assim, o Tathagatha morre e Ānanda desespera-se: ele ainda não tornara-se um arhat. “Se nem um Desperto me serve de algo, devo ser um caso perdido”, imagino Ānanda ruminando, num choro agridoce a morte do amigo. Não é difícil sentir Ānanda vivo, aqui do nosso lado.
Ou então também há, como de praxe, histórias de grandes apostas; riscos desmedidos para ir atrás de algo. Numa época em que uma travessia marítima não era um cruzeiro turístico, Bodhidharma e o jovem Dōgen cruzaram mares, tanto para buscar quanto para levar o “verdadeiro dharma”. Admiramo-nos de sua coragem, ao mesmo tempo em que nos esquecemos que esta tenacidade, esta firme resolução de atravessar montanhas e mares, não é tão nossa desconhecida.
Seguem as histórias, seguem os exemplos, segue a familiaridade. Aprendemos a apreciar os “grandes feitos” dos outros a partir da nossa própria experiência. Para quem nunca pensou em sentar em zazen, as decisões e dramas de Dōgen, Bodhidharma, Ānanda e Enō podem parecer uma grande bobagem, uma grande “perda de tempo”. Se, porém, ao escutarmos uma história desta, sentimos um leve calorzinho de reconhecimento, sabemos de quem estamos falando: não estamos falando de pessoas que viveram e morreram séculos atrás, estamos falando sobre nós mesmos – como se o sangue de buddhas e ancestrais estivessem correndo nas nossas veias, esquentando os nossos pés e mãos.
Quanto mais praticamos, mais vemos a nossa fragilidade, a facilidade com que hesitamos e recuamos, os nossos pequenos passinhos de bebê. Mais apreciamos a força de vontade de algumas pessoas que fizeram grandes apostas; mais apreciamos a raridade que é encontrar um dharma que viceja verdejante. A gratidão é inevitável. Temos bons modelos onde nos fiar.
Mas não paremos por aí. Onde poderíamos ver apenas nomes esquisitos, de difícil pronúncia, amarelecidos pelo tempo, é preciso que nos enxerguemos. Todos eram pessoas como nós, nascidos de pai e mãe, bebedores de leite. De suas vidas, tirantes suas carreiras como professores e mestres, sabemos quase nada: alguns casos e crônicas e frases e ditos e escritos. O resto, “desnecessário”, perde-se - e talvez seja útil que assim o seja. Podemos encontrar nas entrelinhas, porém, as incontáveis histórias que ficaram e ficam por contar: as nossas. Não tão memoráveis, ou tão heroicas, e provavelmente fadadas à maré do esquecimento, como os nomes de nossos bisavós. Estas incontáveis vidas todas são, contudo, o solo fecundo onde se enraíza a prática, onde floresce o Despertar. Sem elas, a história de todos estes grandes homens e mulheres são folhas secas jogadas ao vento.
É preciso um esforço, o esforço da lembrança, para cimentar a memória efêmera – e não há nada mais efêmero do que uma lista de cem nomes. Efêmera e tênue é a transmissão: diz-se que, logo depois do seu Despertar, Shākyamuni ficou tentado a simplesmente permanecer em silêncio e usufruir a sua realização, a não ensinar o dharma - dharma tão sutil, tão difícil, tão sujeito a más interpretações. Foi preciso uma “intervenção divina” para que ele mudasse de ideia. O velho abade poderia ter ficado quieto. Bodhidharma podia ter ficado em casa, em vez de ir para o Leste. Que “chama” é esta que transmitiram, que segue contínua até os dias de hoje? Eu não sei dizer.
Enō foi acompanhado de noite, pelo velho abade, até estar a uma distância segura para seguir viagem. Logo antes do abraço final, entre recomendações, o velho abade fala: “Se você conseguir despertar a mente/coração de outra pessoa, esta pessoa não será nada diferente de mim.”
***
Os dados da história de Huìnéng, inclusive as falas do "velho abade", foram retiradas do Sutra da Plataforma, especialmente o primeiro capítulo, autobiográfico; tradução de Yampolsky, The Platform Sutra.
A descrição de Ānanda é do Denkōroku; o episódio da sua reação à morte do Buddha é relatada, de diversos modos, em vários sutras do cânon páli e sutras mahayana.
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