segunda-feira, 27 de julho de 2009

Um Buda sozinho não faz verão

Uma notinha de rodapé ao Dhammacakkappavattana suttaṃ (DCPS) por Peter Harvey é bem interessante.

O DCPS é o "sutra do colocar a roda do dharma em movimento", o dito primeiro discurso do Buda aos seus cinco colegas ascetas. A roda, cakka em páli e chakra em sânscrito, é indubitavelmente um dos símbolos budistas mais famosos, presente em bandeiras e pinturas e bricabraques e frufruzices afora; tem até o seu símbolo especial na tabela Unicode - ☸. Em alguns é uma roda, outras tantas vezes parece um leme, e maior parte das vezes possui oito eixos, que dizem simbolizar o "nobre caminho de oito partes" (ariyo aṭṭhaṅgiko maggo).

[E deixa eu repetir mais um vez a palavra chakra para as pessoas que estão atrás de ida e pingala e demais toparem com o meu çaite sem querer. Meus queridos, sinto muito, cá não estão, mas...]

Voltando ao Harvey, em sua tradução presente no sempre necessário e nunca esgotado Access to Insight, é que pode haver um "trocadilho", no texto em páli, entre cakka e cakkhu. cakkhu é olho/visão, e dhammacakkhu é "olho/visão do dharma". Abaixo, um trecho do sutra:
E enquanto a explicação acima [que o recém-Buda deu sobre as quatro nobres verdades, ou 'quatro realidades para os nobres', como traduz Harvey] era dada, surgiu no venerável Koṇḍañña a visão-do-dharma imaculada e 'sem manchas': 'tudo que está sujeito a surgir está sujeito a cessar' ("yaṃ kiñci..."). E quando a roda-do-dharma foi colocada em movimento pelo Abençoado, os devas-que-moram-na-terra exclamaram...

Imasamiñca pana veyyākaraṇasmiṃ bhaññamāne āyasmato koṇḍaññassa virajaṃ vītamalaṃ dhammacakkhuṃ udapādi: "yaṃ kiñci samudayadhammaṃ sabbantaṃ nirodhadhammanti". Pavattite ca pana bhagavatā dhammacakke bhummā devā saddamanussāvesu: ...
E depois de um brilho glorioso que nada deixa a dever para a queima de fogos em Copacabana, e um abalo sísmico no triquiliocosmo - sem casualidades -, o Abençoado fala: "o honrado Koṇḍañña então compreendeu! o honrado Koṇḍañña então compreendeu!" E então o venerável Koṇḍañña recebe o nome de Aññākoṇḍañña, "Koṇḍañña-que-compreendeu", e assim termina o sutra.

O forte sentimento que tenho ao ler esta exclamação final do Abençoado é de que ele ficou feliz e surpreso, não parece? Exagero, claro, para fins retóricos, mas depois de ter sido praticamente forçado por Brahma a expor o dharma para os outros homens, não é totalmente estranha a idéia de que Buda estava no mínimo um pouco cético: "esses aí, sei não". E então Koṇḍañña compreende, o olho-do-dharma se abre; "entendessi? tu diz! pior que entendessi, ô istepô!!".

O trocadilho entre cakka e cakkhu que Harvey aponta, porém, vai além das minhas brincadeiras manezinhas: parece que foi preciso que o olho-do-dharma se abrisse em Koṇḍañña - que ele "entendesse" - para que a roda-do-dharma girasse. Não é Buda quem gira a roda.

Em outras palavras, um Buda sozinho não faz verão.

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