Acima, o takkesage, o "gatha (versinho para se recitar e cantar) do o-kesa". O kesa - kashaya, no sânscrito - é o manto, tradicionalmente colorido de açafrão, utilizado pelos bhikkhus. No zen, o kesa é preto para os noviços, e vai se desbotando e ganhando cor com o tempo.
Este verso é recitado depois do primeiro zazen da manhã, em retiros - ou num dia comum, se você estiver em um monastério zen. Quem tem kesa bota o kesa, quem tem rakusu bota rakusu, e quem não tem nada recita de qualquer forma.
O takkesage costuma ser escrito no verso do rakusu - ou pelo menos é o que está escrito no meu - juntamente com o nome do dharma, a data do jukai e a conta bancária do praticante :D
Na figura acima vê-se dois espaços em branco onde não deveria haver algum: o que posso fazer se o applet divertidíssimo de editor de textos em chinês que usei não tem aqueles dois ideogramas (哉 e 広)? Mas deveria ter. Eu sei que talvez haja outra escrita do(s) mesmo(s) ideograma(s). Preguiça. O estilo de caligrafia é o estilo cursivo - sōsho -, que é um dos mais bonitos ao meus olhos ocidentais, mas também é o mais difícil de se certificar dos kanji e que, portanto, me garante um máximo de 85,9 porcento de acuidade. Sabe receita de médico? A mesma coisa.
Abaixo, o takkesage em kanji, romaji, uma tradução utilizada pela sangha local e um exercício de tradução da minha parte, logo abaixo. O texto em japonês peguei do útil blogue, Japanese Zen Chanting, que está anexado também na barra lateral.
大哉解脱服
dai sai ge dappuku [datsu fuku]
Vasto é o manto da libertação,
Quão grande é a roupa da libertação
無相福田衣
mu shō fuku den e
sem forma é o campo de benefícios.
campo de fortuna/felicidade sem forma/aspecto/aparência, este manto
披奉如来教
hi bu nyo rai kyo
Visto agora os ensimentos do Tathagata,
espalhamos/desenrolamos/vestimos respeitosamente o ensinamento do Tathagata
広度諸衆生
ko do sho shu jō
para libertar a todos os seres.
(?) amplo espaço (?) [dos] vários seres sencientes
Algumas coisinhas são interessantes de nota. Na primeira linha eu coloquei o som dos dois kanji, datsu+fuku, que formam dappuku (a mesma coisa acontece em sesshin, que é setsu+shin). ge datsu, de acordo com os dicionários aqui, é a libertação das mazelas humanas e dos desejos terrestres, atingir o nirvana, moksha, etc. Enfim, "libertação".
Olhando os dois separadamente, vemos que ge pode tanto significar uma solução (para um problema), ou uma explicação, tanto quanto um desamarração, um desfazer de nós, ou o alívio ou remissão de uma dor, por exemplo, a depender da construção em que ge se encontra.
Já datsu é um velho conhecido do fã-clube do Dogen, presente na sua misteriosa, interessante e controversa fórmula shinjin datsuraku (身心脱落), dita pelo seu professor na China em uma sessão de zazen - provavelmente quando batia com o chinelo na cabeça de alguém - e que lhe garantiu a resposta da "questão da vida e da morte". Tem gente que diz que Dogen confundiu o chinês do seu mestre e não entendeu corretamente a frase; vai saber. De qualquer forma, para ele shinjin datsuraku era essencial no caminho do Buda, tivesse "entendido" ou não.
datsuraku pode, grosso modo, ser traduzido como "tirar e deixar cair", mas também pode significar, como composto, "perda", "omissão, lacuna, hiato", "deserção, defecção, apostasia", então fiquemos por aqui com os compostos. Eu costumo pensar no datsuraku como uma cobra que está na muda e perde a pele e a deixa cair, ou como o guarda-chuva que penduramos quando chegamos em casa, ou como a cueca que deixamos cair ao chão quando usamos o vaso, ou entramos debaixo do chuveiro.
den é literalmente um campo de arroz, ponto. Provavelmente um dos ideogramas mais simples, um quadrado dividido em quadrados menores, como um campo de arroz chinês. Para uma nação essencialmente agrícola, uma boa colheita deve ser a maior benção para todos, pobres e ricos igualmente. Alguns sofrem mais, em um prazo mais rápido, e outros menos, em um prazo maior. Que maravilha a terra fértil que nutre a todos!
O kesa - assim como o rakusu - é costurado a partir de retalhos retangulares que formam um padrão que parece uma parede de tijolos, ou um campo de arroz. Dizer que o kesa é um campo de benefícios sem forma é uma belíssima imagem poética, que continua no decorrer do gatha - o kesa é aberto, o campo é espalhado, os benefícios são distribuídos para todos os seres sencientes.
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