sexta-feira, 1 de maio de 2009

Não jogue fora os seus acentos, não (pelo menos não tão cedo...)

(se você não consegue ler muitas das fontes deste post, provavelmente você tem problemas de codificação. Não é necessária nenhuma fonte especial.)

Todos nós, praticantes zen-budistas - ou simpatizantes - temos que forçosamente aprender a fonologia de línguas estranhas e, muitas vezes, mortas.


Japonês, chinês arcaico, até mesmo sânscrito, dão suas caras nos vários textos, sutras e fórmulas com que nos deparamos, tantas vezes. Tantos de nós, que sequer chegamos a aprender latim na escola, como era comum décadas atrás, temos que nos virar com línguas que, muitas vezes, apresentam regras incomuns de acentuação e pronúncia.

Incomuns, certamente, mas incomuns para o falante habitual de português. Se já estranhamos a fala de nossos compadres portugueses, como não haveríamos de estranhar a fala de gente - e língua - morta há tanto tempo?

Não se preocupem, porém: várias pessoas ocupam grande parte da sua vida em estudar este tipo de problema. Filólogos, fonólogos, historiadores das línguas, linguistas, psicolinguistas e demais enfurnam-se em tabelas e textos e apresentam algumas coisas interessantes que podem ser de valia.

Algum de vocês tem o dicionário Houaiss em casa? Espero que sim, é um excelente pai-dos-burros. Procurem qualquer palavra. Vejam, do lado, entre colchetes, uma palavrinha com letras que podem ser familiares, mas são estranhas. Esta palavrinha é uma transcrição da palavra para o alfabeto fonético internacional da IPA.

É interessante passar uma tarde de um feriado nublado, como este, dando uma olhada em uma animação de flash mostrando os vários sons possíveis. Dá uma idéia da variedade de sonoridade das línguas, e nos relembra a dificuldade que temos em assimilar um som novo - principalmente quando ele não é parte da nossa lingua mater.

[Eu prometo: tentem aprender a ler sânscrito transliterado, com uma pessoa de sua escolha. Dá bons momentos de risada. Podem fazer escondido dos amigos.]

Transliterado? Sim, transliterado. Transliteração é o processo de converter um sistema de escrita em outro. Não digo converter um alfabeto (a, b, c, d, e...) em outro, pois embora latim e grego sejam sistemas de escrita de alfabeto, o sânscrito (devanagari) é um sistemas de escrita de silabário (ba, be, bi, bo, bu, bha...), e o japonês é muito parecido, neste aspecto.

Já a transcrição é a conversão de um sistema de sons em outros sistema de sons. A palavra francesa vin já está transliterada para a alfabeto português; ela pode, também, ser transcrita, como /vã/, ou como /vɛ/, no já mencionado alfabeto da IPA. A pronúncia é importante: gato pode ser transcrito, dependendo da sua pronúncia, como /gatu/. É mais fácil encontrar quem fale /gatu/ que /gato/.

Maka Hannya Haramita

Tomemos, então, o título dos versinhos que sabemos de cor, carinhosamente chamado de "Maka hannya" - não entremos no texto, pois a discussão se alargaria até os confins do mar ocidental. Maka hannya haramita é escrito com kanjis - ideogramas - japoneses, mas não se trata de palavras japonesas, mas sim de uma transliteração de um termo em sânscrito - maha prajñā pāramitā - baseada em uma transcrição. Soa difícil? Não é.

Os japoneses não tinham um sistema de escrita próprio até por volta do século IV da nossa era. Embora tivessem uma língua local, eles tiveram que tomar emprestado dos chineses os ideogramas para poder escrever a sua língua (a mesma coisa aconteceu com os antigos habitantes da Grécia, que importaram o recém-criado alfabeto fenício). Neste empréstimo ocorreu algo engraçado: muitos ideogramas adquiriram uma leitura dupla, a chinesa e a japonesa. A leitura chinesa (on'yomi) é utilizada até hoje, e de um modo especialmente importante para nós: o "maka hannya", muitos dos sutras, o nome dos mestres (na linhagem), o nome do nosso zendô (man ge san - 萬華山) e os nossos nomes-do-dharma são lidos com a leitura on.

Seigaku, por exemplo, é formado por dois ideogramas (静学) lidos em on'yomi. O sei de Seigaku muito provavelmente não é o mesmo do sei de Seidô, ou de Seikan, ou de Seigen. A única coisa que poderia dizer se são o mesmo é o ideograma: se for o mesmo ideograma, tem o mesmo significado. Se não, são palavras homófonas, com o mesmo som, mas significados diferentes - e o japonês é conhecido por sua extrema homofonia. Mesmo a procura num dicionário simples dá mais de duas dúzias de ideogramas cuja leitura é sei, e quase sessenta cuja leitura é gaku. Para dar uma idéia, é difícil encontrar mais de três palavras homófonas em português.

Para complicar, há também a leitura japonesa (kun'yomi) de cada ideograma. gaku tem a leitura kun como manabu, por exemplo. A leitura japonesa, porém, não significa que a leitura chinesa (on) não possa ser usada no japonês moderno. A universidade Komazawa, onde Kodo Sawaki deu aulas, é 駒澤大學, komazawa daigaku (daigaku pode ser lido como "grande ensino, grande erudição" - universidade).

O da Sodô (祖道 - "caminho dos patriarcas") é o mesmo de aikidô (合気道), e significa "caminho" (dao/tao em chinês), que é o mesmo de bushidô, de chadô, de iaidô, e até mesmo de Dôgen (道元). É o mesmo ideograma. Já sôdô (僧堂) - um nome dado para o recinto de meditação, como zendô (禅堂) - é outro ideograma e, portanto, outro significado: sala, recinto ("dos monges" ou "do zen", respectivamente). Enfim, muitos kanji com uma leitura /dô/: mais de 130 no mesmo simples dicionário.

Para brincar mais um pouco: "eletricidade estática" é seidenki (静電気), "parada eletricidade energia", o mesmo sei de seigaku e o mesmo ki de aikidô, uma palavra japonesa atual com uma leitura totalmente on'yomi. Será que existirá um seidenkidô (静電気道), um caminho espiritual da eletricidade estática?

Ho é diferente de que é diferente de hôô

Muitas línguas, ainda hoje, usam uma distinção que não costumamos usar no português: vogais duplas. O japonês atual é uma delas.

O latim clássico, por exemplo, da mesma forma que o grego antigo, usava esta distinção entre vogais duplas não somente para distinguir palavras, mas também para fazer a métrica poética. Com o passar do tempo, na evolução do português, a nossa maneira de fazer métrica mudou para a alternância de força das sílabas - sílabas tônicas; mas as sílabas tônicas são derivadas das vogais duplas de outrora.

O sânscrito também usava vogais duplas. Voltemos ao nosso exemplo: prajñā pāramitā. Este traço acima de três "as" é chamado macron, e foi um acento criado justamente para mostrar a duplicação do som de uma vogal. Duplicar uma vogal, dependendo da língua, é aumentar um pouco a duração dela, mas não muito. Na notação musical não se costuma botar um ponto ao lado de uma nota para aumentar em metade a sua duração? Uma vogal dupla funciona mais ou menos assim.

Podemos falar "gato" com as duas sílabas rápidas, com a mesma duração, ou então podemos duplicar o a. Costumamos fazer isto, mas não nos percebemos e nem chamamos de vogal dupla, pois não há uma outra palavra "gato" que difere na duração das vogais e que tenha outro significado, no português. /Gato/, /gāto/, /gatō/ e /gātō/ são somente maneiras diferentes - umas um tanto estranhas - de falar a mesma palavra.

Isto, porém, não é sempre assim. No japonês não é a mesma coisa falar ho (火) e (方), e muito menos hōō (凰).

Alguns já devem ter visto a já conhecida palavra arigatou (ありがとう) escrita assim, com ou no final, e em outros lugares arigatô, ou arigatō. São apenas formas diferentes de mostrar que a última sílaba é um pouco mais longa, como a nossa forma engraçada de falar gato, ou um francês falando de um bolo de arroz (sic), ou um japonês na Liberdade mostrando pro gato onde está a ração - ou também, é claro, alguém dizendo "obrigado" em japonês.

Neste sentido, nosso amigo Yôkô, com suas duas vogais duplas - perdoem-me se eu estiver errado - poderia ser referenciado, a partir de hoje, como Youkou. Teríamos nossa Sodou, o monge Meihou Genshou, ou o Seidou; praticaríamos aikidou, comeríamos com o ouryouki e nos sentaríamos no zendou.

A questão é que existem mais ou menos três sistemas atuais para a transliteração do japonês, o rōmaji. Um dos mais antigos utilizava este ou para descrever um o longo. O mais utilizado no ocidente, o sistema Hepburn (e suas variantes), coloca o macron (ā, ō) como símbolo de vogal dupla. Há outros dois sistemas no próprio Japão que utilizam o acento circunflexo (â, ô) para o mesmo propósito. Como nos teclados atuais é muito mais fácil digitar um circunflexo do que ficar procurando um macron na tabela Unicode, é evidente que o circunflexo pegou.

Quando lemos zendô, portanto, estamos lendo zendō: não uma vogal fechada, como o nosso /vô/ ou /metrô/, mas sim uma vogal dupla.

De volta, e lá de novo

E então voltamos ao "maka hannya", assim como os japoneses voltaram-se para os chineses.

O texto original é uma cópia em sânscrito que vai para a China e começa assim: ārya-avalokiteśvaro bodhisattvo mahāsattvo gambhīrāyā prajñāpāramitāyā caryā caramāa eva vyavalokayati sma pañca-skandhās... (o nobre bodhissatva mahassatva Avalokiteshvara, enquanto praticava prajnaparamita, viu que os cinco skandhas...)

Ela passa por um monte de traduções na China, e assim vai para o Japão, onde é lida - até hoje - com os caracteres chineses (chin: hanzi; jap: kanji) com a pronúncia chinesa importada (on'yomi).

Muitas das palavras no sutra encontram traduções disponíveis no "jachinês" da época: olhos, ouvidos, vazio, forma, etc. Detalhe para mārgā, o "caminho (óctuplo)", que é traduzido como 道 (chin: dao/tao, jap: ). Já os conceitos complexos vindos diretamente do sânscrito, linguagem filosófica, são inteiramente transliterados usando a forma da época, já que não encontravam correspondentes no japonês.

Atualmente os japoneses dispõem de dois "silabários", o hiragana e o katakana, (além do rômaji) para escrever. O hiragana são aqueles traços mais simples vistos em grande parte da escrita japonesa, e servem, em conjunção com os kanji, para conjugar verbos, declinar nomes, preposições, etc. Katakana é mais utilizado para transliterar palavras estrangeiras, entre outras tantas coisas.

Este truque não estava disponível para o pessoal daquela época, que então tiveram de fazer outra coisa, muito mais imaginativa. Maha prajñā pāramitā é transliterado, na fonética japonesa, como ma ka han nya ha ra mi ta e cada sílaba recebe um kanji, na leitura on'yomi, que não carrega significado, mas vale pelo seu som, seu valor fonético, sem nenhuma ligação "lógica" com a idéia. Estes kanjis que são usados pelo seu valor fonético recebem, muitas vezes, o nome de ateji. O mesmo acontece com anuttarā samyak sambodhi, "iluminação completa, perfeita e universal", que vira a noku ta ra san myaku san bo dai.

Sem esquecer, é claro, do exemplo mais óbvio: o "grande", "divino" e "incomparável" mantra, gate gate pāragate pārasaṃgate bodhi svāhā, que transliterado é gya te gya te ha ra gya te hara sō gya te bo ji so wa ka.

Enfim, é tão difícil para um japonês moderno entender quanto para a gente.

5 comentários:

  1. Seigaku, meu amigo, você está estudando isso tudo, viva os dias nublados, os belos dias nublados! Sabe que pesquisando por aqui também descobri que o sânscrito e o latim são muito, muito parecidos, não é interessante, duas linguas que dão som e forma à espiritualidade humana, oriente e ocidente numa mesma raiz.

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  2. āmem... :D

    Adoro os dias nublados.

    Sânscrito e latim são realmente muito parecidos. Os dois tem parentesco num ramo linguístico anterior, o indo-europeu. São duas línguas muito complexas, e o sânscrito bate o latim no quesito de "complexidade" - devia ser um inferno ser filho de brâmane, a não ser nos dias nublados...

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  3. Seigaku! Querido amigo!

    Só você mesmo pra buscar estas complexidades,rsrs...

    Mas bem interessante!!!

    Passarei mais vezes por aqui e prometo não acreditar em tudo que vc diz!!!

    Abraço!

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  4. Eeeee Kashin...

    melhor eh quando a gente procura "estas complexidades" e se diverte! Daih eh show de bola.

    E nao acredite em nada do que eu digo.

    :D

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