Nada me irrita mais do que o papo do desapego. Por quê? Porque a maneira como muitos atraídos pelo budismo falam de desapego evidencia, claramente, uma mentalidade de ganho (end-gaining mentality, uma das expressões de Sawaki roshi).
Soa paradoxal? Não me surpreende: a coisa mais interessante do nosso comportamento é o quão paradoxal podemos ser - as diversas voltas tortuosas que fazemos - para continuar a fazer as mesmas coisas, mas sem parecer que as estamos fazendo.
E, de quebra, parecer que estamos melhores do que antes. A virtuose do virtuoso.
"Desapego" é a própria arte, o segredo do zazen. É difícil; é preciso fazer bilhões de vezes, é preciso "voltar" a todo momento, mas, ao mesmo tempo, é um lugar além do esforço e da ansiedade; um escorregão. Sentar em zazen é escorregar. É dar um passo em falso e flutuar no ar, durante um breve momento. Quão breve? É o chão que vem ou é você quem vai?
(Saído de uma sessão particularmente obscura e tortuosa de análise, meses atrás, falando do medo e da ansiedade provocado pelo pensamento de uma “morte súbita”, de um acontecimento que me pegue de surpresa, desço a rua com um guarda-chuva numa mão e uma sacola em outra. A rua úmida e verde da chuva recente, eu calçado com a minha bota impermeável, a calçada com o seu musgo, um passo forte demais, uma sola rugosa de menos, e zuuuum! Em um átimo encontro-me deitado no chão. Levanto-me e saio rindo que nem um louco.)
E então pensamos, todos, que o "desapego", como diz a doutrina budista, é a chave da felicidade. Pode ser. Isso, porém, não é exclusividade do budismo: a ataraxia foi pregada por estóicos e cínicos não muito longe daqui.
Gatos, elefantes, homens e iguanas sabem, intuitivamente, que de vez em quando é preciso jejuar. De vez em quando é preciso parar. De vez em quando é preciso fechar os olhos. Como diria a minha gurua alimentar, é um movimento e uma pausa.
Se você encontrar mel, não se lambuze com ele, ou vai acabar vomitando, diz o livro dos Provérbios. A comida, porém, é saborosa; comemos e nos deleitamos; comemos demais e passamos mal. A saúde, não se pode contar sempre com ela, embora o corpo aferre-se com paixão à vida, independente de qualquer dor ou desconforto. Os amores e os sentimentos, idem. A razão é fugaz, em muitos momentos, e a velhice e morte destino certo, por mais que queiramos e possamos postergá-los.
Duas posições: resignação ou revolta. Que venha, que aconteça, no final das contas tudo eh pó. Ou a revolta e a vontade de fazer diferente, de não se submeter, de mudar o que for preciso. Duas posições extremamente humanas, e sem elas nada seria feito neste mundo. O que elas tem em comum? A vontade, vontade de manter um centro sólido: “isso não me atinge”.
Ah é, cambacica? Vai pro mato pra ver se o aribu te pinica!
Temos a fantasia de não sermos atingidos, de ter – ou produzir, ou encontrar – algo que não muda e que não está sujeito às tantas vicissitudes. Daí, para ler/conhecer o budismo e ouvir falar do nirvana – o "incondicionado", o "improduzido", o "imutável" – são dois passos para criar a armadilha do desapego. O desapego pode, então, neste momento "mágico", virar o lava-mãos para o mundo: estou acima de tudo isto, como a flor do lótus por cima da lama do mundo instável e sujo.
Neste caso, o tal “desapego” não é tão diferente do caso, tão comum, de alguém que tem uma fobia – cavalos, raios, balões, palhaços – para não ter que lidar com coisa ainda pior. É muito melhor ter medo e ficar ansioso de uma coisa bem específica e delimitada, condensada em um objeto – que pode ser controlado – do que o afeto difuso e sobre o qual não se sabe muita coisa.
É melhor selar sua casa contra baratas, deixar que elas não entrem, não façam parte da sua vida; afinal, isto é fácil de fazer, tratam-se de pequenos artrópodes mais suscetíveis a venenos que a uma guerra nuclear.
Trata-se somente de uma analogia, mas tem os seus méritos.
Talvez o primeiro passo precise ser assim. Talvez seja preciso criar esta separação entre "samsara" e "nirvana" (muito cuidado nessa hora, com essas palavras), entre a vida ruim e a vida boa, o errado do certo, o puro do impuro, para algo começar. Não sei. Talvez seja preciso se “desapegar” forçosamente para desengatar a marcha. Também não sei. Sei que as coisas que são começadas uma vez assumem um movimento próprio - amores, vícios. As minhas mãos geladas pelo vento frio do oeste do estado também não serão o "karma" nascido de um começo sem começo? Não acreditem em mim, espinheiros nascem da minha boca toda vez que falo.
Mas, e então? O percurso do Sidarta não foi muito diferente do da gente não. Tá certo, ele fez seis anos de praticas ascéticas e meditativas: estudou com os caras mais überfucker da sua época e penetrou e passou por cada dos diversos jhanas e eteceteras. É um bocado de coisa. Mas nós, em nossas vidas, também fazemos um bocado de coisas – mesmo que não muito “nobres”, muitas vezes. Eu costumo ver o Sidarta-que-saiu-de-casa como alguém que faz um doutorado, ou vai pra África fazer trabalho voluntário, ou toma uma decisão importante na vida, ou decide largar mão da carreira para cuidar de um filho doente. Não tem muita diferença. Cuidado com o espinheiro.
Até o momento em que ele sentou-se debaixo da figueira e desistiu sem desistir, esforçou-se sem se esforçar.
Provavelmente ele já tinha feito isto antes, várias vezes. Dizem que ele sentou-se em dhyana lembrando da ocasião, quando criança, em que participava do festival da colheita com o pai. Era dia, estava quente, e ele brincava com as outras crianças. Cansado, sentou debaixo de uma arvore para descansar e fugir do calor. Ele viu o arado cortando a terra fértil, as minhocas vindo a superfície, os pássaros descendo para comer as minhocas. O solo, o calor, a vida vivendo em cima de vida, ele mesmo vivo. Por que é que, anos depois, depois de ter treinado com os melhores iogues e ter dominado vários estados mentais, Sidarta volta a sentar-se como sentou naquele dia quando criança – da mesma forma como nos sentamos hoje em dia?