No cânon páli há um episódio (em inglês) em que um bhikkhu pensa com os seus botões: "o Honrado não falou se o universo é eterno ou não, infinito ou não, se o corpo e alma são o mesmo, ou não o são, se um Tathagata existe depois da morte, ou não, ou existe e não existe, ou nem existe e não existe. Não aceito. Se ele não puder me dar uma posição a respeito destas questões eu abandonarei o treinamento."E assim ele se dirige para o Tathagata e, feitas as devidas amabilidades, desfia o rosário: "se o Honrado sabe que cada uma das afirmações acima é correta, ele pode dizê-lo. Se ele sabe que é incorreta, idem. Mas, se ele não sabe, a coisa mais óbvia a ser feita é admitir 'Eu não sei'". E ameaça abandonar o treinamento."Alguma vez", pergunta Buda, "eu te disse que, praticando, vivendo a vida santa comigo, eu te responderia tais questões?""Não", responde o bhikkhu ("não, senhor", na tradução. Sempre esqueço destes detalhes.)"E alguma vez você me disse que iria viver a vida santa comigo se, em retorno, eu te dissesse tais coisas?""Não (senhor)"."Então, seu tolo, por que reclamas? Se alguém colocasse tais condições para a sua prática ele morreria e estas coisas ainda ficariam sem ser ditas ou declaradas pelo Tathagata. É como um homem atingido por uma flecha envenenada que, uma vez na presença do médico, dissesse 'Ninguém vai tirar esta flecha antes que eu saiba tudo sobre a pessoa que a atirou, o material do que é feita, e de como foi atirada'. O homem morreria e as perguntas continuariam sem resposta. [pelo menos para ele]"A analogia é a mesma: se alguém disser 'eu não praticarei com o Honrado se ele não me disser estas coisas', este alguém morreria e tais coisas não seriam ditas ou declaradas pelo Tathagata. A prática, a vida santa, não depende de cada uma destas concepções; independente de cada uma delas ser verdade ou não, ainda há nascimento, envelhecimento, morte, sofrimento, lamentação, dor, desespero e ansiedade, cujo fim eu faço ser conhecido aqui e agora."Então lembre-se do que eu disse como dito, e do que eu não disse como não dito. Sobre todas estas coisas eu não disse nada, não declarei nada. E por que eu não disse nada? Porque não se relacionam com a meta. O que foi que eu disse, que eu declarei? Dukkha, sua origem e seu fim. E por que os declarei? Porque levam à meta. Então lembre-se de que o que eu disse está dito e o que eu não disse não está dito."
Este é um episódio bastante conhecido na literatura budista, e que carrega um símile ainda mais conhecido, o símile da flecha. As questões irrespondidas, em número de 10, aqui, foram ampliadas para 14 - somente adicionando "os dois" ou "nenhum dos dois" às duas primeiras perguntas sobre o universo/cosmos. Ficaram conhecidas como as "14 questões irrespondíveis".
Eu questiono o epíteto "irrespondíveis", e sugiro "irrespondidas". Afinal, esta foi a postura do Buda: a ausência de resposta não necessariamente se alinhava com a impossibilidade de conhecimento. Eu, tampouco, imagino que são necessariamente questões que encontrem respostas - pelo menos tão facilmente.
O importante sublinhar aqui é que este sutra é muitas vezes citado para dizer: "abandone todo o questionamento filosófico, toda a especulação metafísica, pois elas não servem para nada", que muito facilmente pode evoluir para um "não pense", alimentando ainda mais uma postura anti-intelectual encontrada em alguns lugares de prática.
É preciso entender um pouco das sutilezas do diálogo. Se as questões são irrespondíveis, se elas têm ou não resposta, isso não entra em jogo - a não ser para o bhikkhu, provavelmente em sua sede de entendimento, da qual compartilho. O importante é que as questões foram irrespondidas, de um modo bem claro, e por um motivo mais claro ainda, que o Buda relata ao final: o que eu declarei foi dukkha, sua origem e seu fim, a meta que leva ao desprendimento, à paz, ao incondicionado. Para isso, tais questões não ajudam, não são meios hábeis. O que eu disse eu disse, e o que eu disse eu não disse.
Lembremos que, em vários momentos dos sutras budistas, vemos o Buda conversando, dialogando, com algumas das filosofias em voga na sua época: o jainismo, a filosofia samkhya, e diversos outros bramanismos já esquecidos pelo tempo, além dos "hereges". O seu método certamente não é dialético: Buda não quer chegar à definição de algo saindo da dúvida, pois ele já possui a "sabedoria", o "olho que vê", a sabedoria do fim de dukkha, e uma prática para que cada um que deseje desenvolva isto.
Por isso muitas das conversas do Buda com Fulanos ou Sicranos têm este sabor característico: ele sempre argumenta para demonstrar a diferença de tal e tal ponto de vista com relação ao Dhamma, e como tal e tal ponto de vista pode ser maléfico - ou simplesmente inócuo - para o fim de dukkha, e c'est ça. Parece um pouco dogmático, o discurso de alguém que está convicto de possuir uma verdade e quer persuadir, e no fundo é isto mesmo, pois para o budismo o Dhamma é um só - o Dhamma do fim de dukkha, e não uma explicação do mundo.
Então não é surpresa que o Buda seja interrogado pelo bhikkhu como alguém que deveria saber sobre estas coisas "cosmológicas" - e se não soubesse que declarasse ignorância, ora pois, que ela não é pecado. E talvez ele, Buda, não soubesse mesmo responder, eu chuto (embora a literatura nos diga que ele possuía o "olho do Dhamma"). Eu pessoalmente não ficaria infeliz com isto, até mais contente, por me sentir mais próximo deste homem - o sentimento de proximidade é fundamental para mim, não sou atraído por transcendências.
Algumas outras pessoas destacam o fato que Buda prossegue sem responder para evitar cair nos extremos do "é" e "não é", do "eternalismo" e do "niilismo", coisa que vemos ele fazer mais explicitamente em outros sutras vizinhos. A questão é que, para o Buda, qualquer concepção determinada sobre a "realidade" é problemática, pela própria natureza dos conceitos e ideias.
Trago um trecho de outro sutra para apontar esta questão e uma outra (paralela, sem dúvida):
Ocupando-se com coisas que não merecem atenção e não se ocupando com coisas que merecem atenção, ambas, as impurezas que ainda não surgiram, surgem e as impurezas que já surgiram, aumentam.7. É desta forma que ela se ocupa sem sabedoria: ‘Eu existi no passado? Não existi no passado? O que fui no passado? Como eu era no passado? Tendo sido que, no que me tornei no passado? Existirei no futuro? Não existirei no futuro? O que serei no futuro? Como serei no futuro? Tendo sido que, no que me tornarei no futuro?’ Ou então ela está no seu íntimo perplexa acerca do presente: ‘Eu sou? Eu não sou? O que sou? Como sou? De onde veio este ser? Para onde irá?’8. Quando ela se ocupa dessa forma, sem sabedoria, uma entre seis idéias surgem nela. A idéia de que ‘um eu existe em mim’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que ‘um eu não existe em mim’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que ‘eu percebo o eu através do eu’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que ‘eu percebo o não-eu através do eu’ surge como verdadeira e consagrada; ou a idéia de que ‘eu percebo o eu através do não-eu’ surge como verdadeira e consagrada; ou então ela tem uma idéia como esta: ‘É esse meu eu que fala e sente e experimenta aqui e ali o resultado de boas e más ações; mas esse meu eu é permanente, interminável, eterno, não sujeito à mudança e que irá durar tanto tempo quanto a eternidade.’ Essas idéias especulativas, bhikkhus, se denominam um emaranhado de idéias, uma confusão de idéias, idéias contorcidas, idéias vacilantes, idéias que agrilhoam. Aprisionado pelas idéias que agrilhoam, a pessoa comum sem instrução não se vê livre do nascimento, envelhecimento e morte, da tristeza, lamentação, dor, angústia e desespero; ela não se vê livre do sofrimento, eu digo.
Dois momentos: o momento de assombro, perplexidade, dúvida - o mesmo assombro que Platão caracteriza como o começo da filosofia, o necessário para o filosofar, e que Aristóteles deseja sanar por via da enteléquia. É o mesmo assombro básico que caracteriza, para Heidegger, a pergunta fundamental da metafísica: por que as coisas são, em vez de simplesmente não ser? Vale dizer que, em muitos momentos, é o mesmo assombro e dúvida e também exasperação que leva à procura do barquinho budista. O budismo nunca aparece do nada, veja o próprio exemplo de Siddharta.
Segundo momento: o momento da concepção de uma ideia, de uma visão; "isto é assim, aquilo é assado". Ideias que agrilhoam, que prendem, diz o Buda, e que não levam à meta, ao fim de dukkha; são um obstáculo, devem ser removidas.
Embora Buda apresente o primeiro momento como o de pessoas que deixam as impurezas tomar conta da mente, pessoas sem sabedoria, eu me pergunto se tal momento não é necessário, ou, pelo menos, bem-vindo - para pessoas sem sabedoria como a maioria de nós. Momento de dúvida, de assombro, momento de abertura do pensamento - e com pensamento, aqui, não quero dizer somente o encadeamento de idéias e palavras.
Muito bom Seigaku! Veio bem a calhar. Obrigado.
ResponderExcluirMuito bom Seigaku-san. Aqui um outro link:
ResponderExcluirwww.facebook.com/note.php?note_id=157540289558
Dukkha é eterno ou não? Dukkha e não-dukkha são o mesmo ou não são? Dukkha existe depois da morte, ou não, ou existe e não existe, ou nem existe e não existe? Dukkha é uma ilusão ou não?
ResponderExcluir"Dukkha existiu no passado? Não existiu no passado? Existirá no futuro? Não existirá no futuro? Dukkha é? Dukkha não é? O é dukkha? O que não é dukkha? Haverá cessação de dukkha? Quem sofre dukkha?"
A concepção de dukkha não poderia ser também arbirariamente determinada?
Em diversos momentos "Eu" me parece ser mais verdadeiro que "dukkha".
Às vezes parece ser uma mesmo uma questão de dúvida, espanto e fé.
Oi João,
ResponderExcluirFiquei pensando no q vc escreveu:
"Dukkha existiu no passado? Não existiu [...] Quem sofre dukkha?"
E penso que o Buddha responderia assim:
"Quem dela se ocupa dessa forma, sem sabedoria, uma entre seis idéias surgem. A idéia de que 'dukkha existe em mim' [...] Essas idéias especulativas se donominam emaranhado de idéias, uma confusão de idéias, idéias contorcidas ..."
Do modo como entendo, a reificação de qualquer coisa, do 'eu' ou de 'dukkha', são igualmente um "emaranhado de idéias confusas e contorcidas".
Abs,
Paulo
P.S. Gostei muito do texto do Seigaku
Dhanapala, obrigado pelo texto do Tam Huyen Van, postado pelo Miklos; muito mais claro, certamente, do que o meu, acima. E recomendo a todos os passantes com facebook que dêem uma olhadela, ou então em http://tamhaovan.multiply.com/journal/item/89.
ResponderExcluirJoão, João, João... você e as suas perguntas, seu espertinho. É impressão minha ou você está numa fase de exploração do relativo? :D Mas enfim, sim, dukkha poderia ser definido arbitrariamente, e assim o é. A sua pergunta, se dukkha poderia ser arbitrariamente definido, é genial.
O que seria "ser definido arbitrariamente", contudo? Uma versão: ser definido ao léu, ao capricho, ou gosto da especulação sem muito substrato de "evidência". Outra versão: ser definido de acordo com árbitros ou arbítrios, de acordo com conceitos arbitrados anteriormente, ou de acordo com uma tradição.
No primeiro ponto de vista, temos muitos dos "equívocos" que uma leitura ou compreensão superficial traz, tal como dukkha=sofrimento, "life is suffering", "pessimismo budista", etc. No segundo, temos a tentativa de passar um conceito - é, isto mesmo, conceito na mesma acepção que a filosofia o usa - através de uma palavra que, como os estruturalistas conseguiram nos mostrar até o enjôo, depende de toda a linguagem para fazer sentido. Então você tem a história etimólogica de dukkha e a apreensão de outras culturas do mesmo conceito.
Oquei, vamos ao que interessa, chega deste papo enrolado: não lhe parece que a experiência de algo como dukkha foi um estopim para o questionamento - uma experiência de pensamento, devo complementar - do jovem Sidarta? E não lhe parece que esta experiência de algo como dukkha, apesar de não ser fácil de ser conceituada, é fácil de ser apontada? Afinal, aquele que não sente dukkha - vejamos, um dos vários tipos de devas - não precisa do dhamma, não sente necessidade dele - ou mesmo o vê como algo sem sentido; não sentido lógico, mas sem sentido para ele.
Algumas perguntas sobre dukkha são válidas para "alcançar a meta": como ele aparece, de onde surge, como surge, e o que fazer com ele. Alguns destas perguntas podem responder até mesmo a questões filosóficas ou psicológicas, por que não? Afinal, o budismo não se sustenta em afirmações que beiram a metafísica (dhammas são impermanentes, dhammas não têm svabhava)? Mas é quase que por acidente; este não é o objetivo, o objetivo é ter visão sobre esta natureza "dúkkhica".
Só para deixar claro: quando respondo assim, com suposto conhecimento de causa, é para responder, também, a mim mesmo.
Paulo, apareça mais vezes. :D
(Nota para um futuro não muito distante: aprender a falar e escrever menos empolado. Mas o culpado é o João.)
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