sábado, 28 de fevereiro de 2009

Sesshin de Carnaval 2009

Findo o sesshin de carnaval da CZBF, eu, o praticante que tem e terá o maior eu de toda a escola Soto (piada interna), nada mais posso fazer que postar a minha foto do meu momento no sesshin. E tenho dito.

Mas o resto está espalhado no visualmente delicioso álbum de fotos, maioria delas de Seikan, que tem um bom olho pra certas coisas.

Eu não tenho nenhuma citação de qualquer mestre ou patriarca ou bodhisattva para postar, evidenciando a importância de um sesshin, ou os méritos incomensuráveis da prática da mente-una, ou uma descrição do self-fulfilling samadhi, então fiquemos por aqui por hoje.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Temeridade


Kashin mandou este texto para a lista zensul@yahoogrupos.com.br.

Certa noite voltei ao meu eremitério após caminhar nas montanhas, e percebi que todas as portas e janelas da cabana estavam completamente abertas. Ao deixar a casa, eu não as havia fixado, e um vento frio soprou através da habitação, abrindo as janelas e espalhando por toda a sala os papéis que estavam sobre minha mesa. Imediatamente fechei as portas e janelas, acendi uma lâmpada, recolhi os papéis e arrumei-os ordenadamente sobre minha mesa. Acendi então o fogo da lareira, e logo a lenha crepitante voltou a aquecer a sala.

Algumas vezes nos sentimos cansados, com frio e solitários no meio da multidão. Podemos desejar nos retirar para sermos nós mesmos e nos aquecermos novamente, como fiz no eremitério, sentando-me perto do fogo, protegido do vento frio e úmido. Nossos sentidos são janelas para o mundo exterior, e algumas vezes o vento sopra e nos perturba interiormente. Muitos de nós deixamos a janela aberta o tempo todo, permitindo que as visões e os sons do mundo nos invadam, nos penetrem e exponham nosso eu triste e perturbado. Ficamos com muito frio e nos sentimos solitários e temerosos. Você já deu consigo assistindo a um programa horrível na televisão e incapaz de desligá-la? Os sons estridentes e o estampido de armas de fogo são desagradáveis. No entanto, você não se levanta para desligar a televisão. Por que você se tortura dessa maneira? Você não quer fechar suas janelas? Está com medo de ficar sozinho – do vazio e da solidão que poderá encontrar quando se vir a sós?
Thich Nhat Hanh. O Sol meu coração: da atenção à contemplação intuitiva. Editora Paulus: São Paulo, 1995

Eu não sei, Thay. Eu não sei por que faço isto. Não sei por que fazemos isto.

Dogen, no seu breve manual sobre o zazen (fukanzazengi), diz: escolha um lugar confortável, protegido de ventos e sol, nem muito frio nem muito quente, com um assento confortável e roupas limpas e confortáveis; esteja saciado e sente-se da maneira mais confortável possível. E daí então faça zazen, "dando o passo para trás e voltando a luz para iluminar dentro".

É como voltar para casa, fechar as janelas e acender a lareira. E botar os papéis em ordem.

Aqui em casa - meu apartamento é um belo receptáculo de sol, ele pega sol de todos os lados possíveis e imagináveis - toda vez que começa uma chuva é como se fôssemos marinheiros correndo pelo convés e gritando "ôôô", e lá se vão as janelas a fechar. Pode ser aquela chuva úmida de verão, ou aquela fria e cheia de vento das estações mais frias, não importa: a janela fica fechada enquanto estiver chovendo. Não queremos molhar móveis e chão de madeira, e o telhado parece um caixote e não tem beiral. Até o próximo verão gostaria de ver toldos nas janelas, mas acho que é ele ou eu, alguém vai ter que sair e talvez seja a segunda opção.

Não seria mais apropriado deixar chover, já que as janelas já estão abertas? Não seria mais natural deixar ventar, já que o vento sopra? Bem, ventar é a atividade do vento, e fechar janelas e acender lareiras é a nossa.

Talvez a prática do zazen nos torne temerários demais, sem motivo. Estar sentado com todas as coisas que vem e vão, muitas vezes acompanhado de dores que não cessam, passando por turbilhões de pensamentos e sentimentos confusos, pode nos fazer pensar que "temos" que passar por todas as coisas, independente do que sejam. Que temos que sentar no frio, ou no calor, ou na fome; não como fato dado no mundo - que muitas vezes, por mais ajuda que tivermos, está quente ou frio e pronto - mas sim como se fôssemos atrás disto, como se precísassemos. Como se tivéssemos.

Nós não temos nada.

Sim, queremos olhar para tudo isto na tevê. Não conseguimos, queremos, desligar. Lembro-me até hoje, quando da queda das torres gêmeas em Nova Iorque: a repetição incessante da mesma imagem, da mesma cena girando em volta da mesma partícula condensada de tempo, o tempo do impacto do avião no prédio, sendo mostrada incessantemente, como se a imagem quisesse se projetar e impactar incessantemente, tanto no prédio quanto nas nossas retinas - e como queríamos, muitos, que assim fosse. Como animais que se paralizam quando olham para um farol de carro: é a fascinação que vem misturada com o terror e o medo.

O medo nos faz ser temerários, nos faz querer ser temerários - ou então nos paraliza. E quem foi que disse que a coragem, esta "virtude", "excelência" tão antiga, não é ter medo? Coragem pode ser, mesmo tendo medo, escolher não agir de acordo com ele. Entre o medo e a temeridade.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Paraíso Perdido


A nostalgia das origens nos persegue: em nossa cultura, em nossos pensamentos, no que desejamos.

Fomos expatriados de um outro lugar melhor, vindo parar aqui; vivemos épocas de ouro, e agora estamos neste tão vil metal; as coisas complicaram-se demais, nós que éramos tão simples e inocentes; a era dos milagres terminou, e agora estamos arrastando os pés na areia seca do deserto; deslumbramo-nos com as idéias e agora estamos aqui, prisioneiros do sensível, neste corpo-túmulo; fomos filhos de deuses, e agora até mesmo netos de deuses atravessam o mar e vão embora, deixando-nos sozinhos.

O bom selvagem.
O útero materno.
O jardim do Éden (atual Armênia).

Explicações são diversas: realmente vivemos em um jardim de delícias, antes do começo dos tempos históricos; realmente vivemos em um lugar onde tudo nos era dado e de onde tivemos que sair à força, e para lá queremos voltar; realmente somos muito mais do que somos agora, perdidos que estamos.

Em algum outro lugar encontraremos a beatitude perdida lá no começo.

Esta nostalgia é tão amarrada nos meandros da nossa cultura e natureza, que é até mesmo difícil falar sobre ela.

Bem, Lacan dizia que nunca tivemos tal beatitude, que ela é uma construção a posteriori; então todo anelo por um objeto-primordial-único-que-satisfaça-todo-o-desejo é um projeto impossível por princípio. Traduzindo a fala de Lacan: nunca moramos no jardim do Éden.

É difícil engolir uma coisa desta, mesmo que você particularmente pense não acreditar nisto, pois se as outras pessoas estiverem certas talvez você também tenha chance de voltar para a barriga da mamãe, redimindo-se do ceticismo em qualquer lugar especialmente projetado para isto.

Mas Lacan também continua: esta nostalgia é o que constitui o desejo, o desejo para a psicanálise que não deve ser lido somente como vontade-de-ter, ou apego (que é como os buddhistas costumam pensar o desejo) mas sim como vontade-de-ser. Vontade-de-ser o quê? Ser você mesmo, ora bolas. Tentar ser você mesmo e, se possível, autocompletar-se, como naquela piada que diz que o cúmulo da rapidez é correr em volta de uma mesa e poder tocar as suas costas com a mão.

É mais fácil colocar as mãos para trás e tocar as suas espáduas.

Chögyam Trungpa, em um trecho belíssimo, descreve em termos poéticos o zanzar de um macaco pelos seis reinos kármicos. Gostei dele e, quando puder, transcrevo aqui. Dos infernos até o reino dos deuses, e o caminho inverso: o que Trungpa consegue fazer é descrever de uma forma que se fica com a sensação que o que pode ser pensado como "superior", este belo reino de beatitude e inércia que é o devaloka, está tão enredado no "inferior", o inferno que comprime e desespera, que nenhum dos dois é particularmente desejável.

Um é mais desejável que o outro talvez se compararmos os dois.

Trungpa coloca então que o macaco que desce - estação Paraíso, estação Pacaembu, estação Consolação, estação Ibirapuera, estação Clínicas, estação Carandiru - chega no reino dos famintos, e que esta fome é "lembrança" de quando estava no reino dos deuses, onde não era preciso pedir e ir atrás de nada, tudo está disponível para satisfação quase-imediata. Não é interessante isto? Pois, olhando desta forma, a fome, o estar faminto - e não se trata só de comida, claro - não existe por si mesma. São maneiras de estar-no-mundo.

Eu posso tentar ensinar o meu gato a falar, sem sucesso. No máximo o que ele aprenderá é a miar um tanto mais ou menos, de tal ou tal forma - mas isto não é falar. Não adianta.

Até mesmo, então, ter nostalgia do paraíso perdido é uma forma de estar-no-mundo, interdependente de outras tantas diversas formas. É um grande repositório de "esperança", esta nostalgia. Hannah Arendt disse uma vez que sem esta esperança - sem a esperança de que as coisas vão pelo menos "melhorar" - os homens honestos desesperariam e se matariam.

Não deixa de ser um truque, talvez. Homens honestos então poderiam olhar melhor para isto e achar outro caminho. Mas sobre isto nada sei, minha fala e meus pensamentos são de outrem.