A nostalgia das origens nos persegue: em nossa cultura, em nossos pensamentos, no que desejamos.
Fomos expatriados de um outro lugar melhor, vindo parar aqui; vivemos épocas de ouro, e agora estamos neste tão vil metal; as coisas complicaram-se demais, nós que éramos tão simples e inocentes; a era dos milagres terminou, e agora estamos arrastando os pés na areia seca do deserto; deslumbramo-nos com as idéias e agora estamos aqui, prisioneiros do sensível, neste corpo-túmulo; fomos filhos de deuses, e agora até mesmo netos de deuses atravessam o mar e vão embora, deixando-nos sozinhos.
O bom selvagem.
O útero materno.
O jardim do Éden (atual Armênia).
Explicações são diversas: realmente vivemos em um jardim de delícias, antes do começo dos tempos históricos; realmente vivemos em um lugar onde tudo nos era dado e de onde tivemos que sair à força, e para lá queremos voltar; realmente somos muito mais do que somos agora, perdidos que estamos.
Em algum outro lugar encontraremos a beatitude perdida lá no começo.
Esta nostalgia é tão amarrada nos meandros da nossa cultura e natureza, que é até mesmo difícil falar sobre ela.
Bem, Lacan dizia que nunca tivemos tal beatitude, que ela é uma construção a posteriori; então todo anelo por um objeto-primordial-único-que-satisfaça-todo-o-desejo é um projeto impossível por princípio. Traduzindo a fala de Lacan: nunca moramos no jardim do Éden.
É difícil engolir uma coisa desta, mesmo que você particularmente pense não acreditar nisto, pois se as outras pessoas estiverem certas talvez você também tenha chance de voltar para a barriga da mamãe, redimindo-se do ceticismo em qualquer lugar especialmente projetado para isto.
Mas Lacan também continua: esta nostalgia é o que constitui o desejo, o desejo para a psicanálise que não deve ser lido somente como vontade-de-ter, ou apego (que é como os buddhistas costumam pensar o desejo) mas sim como vontade-de-ser. Vontade-de-ser o quê? Ser você mesmo, ora bolas. Tentar ser você mesmo e, se possível, autocompletar-se, como naquela piada que diz que o cúmulo da rapidez é correr em volta de uma mesa e poder tocar as suas costas com a mão.
É mais fácil colocar as mãos para trás e tocar as suas espáduas.
Chögyam Trungpa, em um trecho belíssimo, descreve em termos poéticos o zanzar de um macaco pelos seis reinos kármicos. Gostei dele e, quando puder, transcrevo aqui. Dos infernos até o reino dos deuses, e o caminho inverso: o que Trungpa consegue fazer é descrever de uma forma que se fica com a sensação que o que pode ser pensado como "superior", este belo reino de beatitude e inércia que é o devaloka, está tão enredado no "inferior", o inferno que comprime e desespera, que nenhum dos dois é particularmente desejável.
Um é mais desejável que o outro talvez se compararmos os dois.
Trungpa coloca então que o macaco que desce - estação Paraíso, estação Pacaembu, estação Consolação, estação Ibirapuera, estação Clínicas, estação Carandiru - chega no reino dos famintos, e que esta fome é "lembrança" de quando estava no reino dos deuses, onde não era preciso pedir e ir atrás de nada, tudo está disponível para satisfação quase-imediata. Não é interessante isto? Pois, olhando desta forma, a fome, o estar faminto - e não se trata só de comida, claro - não existe por si mesma. São maneiras de estar-no-mundo.
Eu posso tentar ensinar o meu gato a falar, sem sucesso. No máximo o que ele aprenderá é a miar um tanto mais ou menos, de tal ou tal forma - mas isto não é falar. Não adianta.
Até mesmo, então, ter nostalgia do paraíso perdido é uma forma de estar-no-mundo, interdependente de outras tantas diversas formas. É um grande repositório de "esperança", esta nostalgia. Hannah Arendt disse uma vez que sem esta esperança - sem a esperança de que as coisas vão pelo menos "melhorar" - os homens honestos desesperariam e se matariam.
Não deixa de ser um truque, talvez. Homens honestos então poderiam olhar melhor para isto e achar outro caminho. Mas sobre isto nada sei, minha fala e meus pensamentos são de outrem.