quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Pequena nota sobre Hakuin

Acho que era mesmo Hakuin. Quando criança, ele escutou uma palestra do pessoal do Nichiren sobre os "infernos" - não parece alguns padres católicos? - e ficou morrendo de medo. Mal conseguia dormir de noite, durante alguns dias. Perguntou pra sua mãe o que poderia fazer para não ir parar no inferno, e ela respondeu que ele deveria prestar devoção para um deus xintoísta lá.

Então Hakuin vira monge aos 14 por causa do medo do inferno, pensando que um monge/sacerdote poderia escapar dos "fogos do inferno". O que só piora quando ele descobre, com 18, que um mestre zen chinês, Ganto Zenkatsu, foi morto por bandidos, e que seu grito pode ser ouvido por muitos quilômetros. Até mesmo Ganto, talvez santo - péssimo trocadilho - podia ser morto cruelmente por bandidos. Como ele, Hakuin, poderia então escapar do inferno?

(Más notícias para ele: Nagarjuna também foi esfaqueado e morreu. Os discípulos dele queriam saber quem tinha feito isto, e Nagarjuna se recusou a dizer quem foi.)

Muita coisa de Hakuin nesta página.

Aliás, eu de vez em quando penso (um gedankenexperiment): se, "na pior das hipóteses", existe um inferno - um lugar de sofrimento e dores intermináveis, ou pelo menos de duração muuuuuuuuuuito longa, em algum momento a dor seria nossa vida cotidiana, e talvez aprenderíamos a viver com ela - existe um limiar de dor, você não sabia? A não ser, é claro, que o genie malin fosse esperto o suficiente para saber que o pior inferno é aquele que modula dores e falta de dores, para lembrar que a dor existe e é forte (lembra Freud e o conceito de prazer/desprazer como simples diferença de "tensão"). Mas, se for assim, talvez já estejamos nele, e até mesmo banhos quentes e barrigas cheias podem ser provações terríveis.

Segundo

É chato perceber, mas sempre estamos procurando por emoções fortes.

Ou, melhor dizendo, gostamos de "fortificar" nossas emoções. As emoções, em si, são sempre fortes em sua presença nua, em sua potência. Descobrimos isto com um tempo de prática do zazen: as pequenas emoções flutuantes e sempre presentes, pequenas não em tamanho, mas em "importância" que decidimos dar a elas. Pequenas contra a luz do bando de sonhos em que estemos enredados o tempo todo.

Vista de certo modo, qualquer emoção cotidiana pode ser angustiante, ou extasiante. Lembro-me das frases de... seria Hakuin? Não lembro. Mestre zen que relata que, quando criança, ao ser lavado pela mãe, pergunta a ela se ela não sente a angústia deste ato, de ser lavado, tomar banho.

Quer coisa mais "forte" que a dor cotidiana, a dor do estar vivo? Muitas vezes deixamos de vê-la, ocupados que estamos em pressagiar a próxima emoção que desejamos. Mas ela é constante, e forte pela sua constância - nas costas, nos dentes, na cabeça, nas vísceras. Faz parte.

De um ponto de vista, a vida cotidiana é extremamente insatisfatória. Não é de surpreender que durante o zazen o que mais queiramos - por menos que queiramos - é terminar o zazen. Então "sonhamos" que estamos fazendo zazen, que temos insights profundos, até sonhamos que descobrimos o ponto fundamental do zazen e que talvez atingiremos algo, e que depois deste algo não precisaremos mais sentar em zazen e estaremos livres deste zunzum extremamente insatisfatório que é o zazen.

Tão insatisfatório que qualquer coisa seria melhor. Gostamos de fortificar nossas emoções, de fazê-las mais do que "são" - é difícil dizer como uma emoção "é de verdade". Aguentamos bastante coisa, até, aguentamos dores extremas - contanto que sejam por alguma coisa, por alguma "causa", que levem a algum lugar. O martírio é aguentável porque dura pouco; a agonia mais extrema pode ser vista como um momento privilegiado - contanto que seja único. E ainda pode garantir uma outra coisa - uma vida eterna em um paraíso. Que são 80 anos neste vale de lágrimas comparados com uma eternidade no paraíso? Daí sim pode valer a pena "tudo suportar".

O desfalecimento do orgasmo, do amor, como último, único e derradeiro... por ora. Parece ser uma boa metáfora para aquilo que tanto procuramos: um derradeiro orgasmo cósmico. Eis a pulsão de morte freudiana. Mas... tudo o que vemos é o beco. Estamos de volta depois do orgasmo e da agonia, e o pior é que eles se repetem em uma escala milimétrica todos os dias, se sentarmos e prestarmos atenção! Ah, que porre de vidinha. E 80 anos assim talvez para nada?

Tudo bem, pode-se aguentar 80 anos, ou menos, e quem sabe tudo acaba. Mas, será que acaba? Se há vida depois da morte? Certamente, dado que a houve antes do nascimento - não minha, não sua, mas de "alguém". Talvez acabe para mim, mas virão outros depois, com sua vida de talvez 80 anos. E, se não houverem, haverão ainda pedras sendo lambidas pelo mar durante muito, muito tempo. Será que as pedras anseiam pela onda derradeira, a onda final que virá de uma vez por todas?

Tédio e satisfação sucedem um ao outro em uma escala descomunal.

Daí talvez começamos a pensar que talvez esta ânsia pelo "derradeiro" seja um tanto quanto equivocada. Que esta emoção fortificada que postergamos e colocamos em um porvir é isto, uma criação das nossas cabeças. E então ficamos ainda mais decepcionados. A vida parece se repetir sem se gastar. Nada de ponto final, a não ser um escurecimento, talvez, em um momento que é irmão de todos os outros. Nenhuma diferença ontológica, talvez nenhuma iluminação metafísica ou mística: poderemos morrer dormindo, em pé, engasgados, ou depois de uma agonia "sem sentido". E agora?

Eis o zazen. Ele nunca se curvará perante as suas vontades de satisfação, por mais virtuoso que você ou elas sejam. Jamais. Ele nunca fortificará alguma emoção, e jamais trará algo de derradeiro, por mais que você se esforce. O que permanece... o que permanece? Eu ia afirmar, mas agora pergunto, ao invés disso. O que permanece?

Eu respondo: esta vida insatisfatória, um tanto desesperadora. É isso que tenho a dizer pelo momento. Eu não tenho dúvida de que estou equivocado; portanto, não acreditem no que digo, não se fiem no que falo.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Primeiro

Como de praxe, como todo bom lido praticante zen, começo um blog.

Blog não serve para nada mais que colocar pedacinhos de pensamentos aqui e ali. Por causa disto, não me faltam blogs; há outro em que escrevo anos até, mas como ele fala muito "de mim" - e como fala! - fica de fora do circuito dos blogs mais espiritualizados, para quem quer colocar as coisas desta forma. Não há necessidade. Entendo, contudo, que é melhor delimitar as áreas. O tempo ruge.

Então, quem quiser que leia outro!

Manjusri, o bodhisattva da sabedoria (prajñā), é o carequinha presente no zendô. É preciso, algumas vezes, dizer aos iniciantes que a estátua no meio dos zafus não é Buda. De vez em quando flagra-se alguém prostrando-se diante do "Buda", o que é maravilhoso, pois não faz tanta diferença assim. É Manjusri. E de vez em quando ele carrega uma espada. Uma espada que corta em um.

Cortar em um funciona muito rapidamente como uma frase de efeito paradoxal, e muita gente gosta dela por causa disto. E, gostando, talvez ela perca a função de dizer exatamente: não se trata só do nozinho na sua cabeça, pós-modernos que estamos acostumados a ouvir paradoxos como mp3 no ipod, mas sim de uma espada que corta em um. Tente compreender isto, e não somente relevar com um dos "conhecidos paradoxos do zen".

Mas também funciona como paradoxo, e voltamos então a alguém que descobre que o Buda é Manjusri. Antes não havia problema, porém agora as estátuas estão trocadas.