Um dos pontos mais atraentes e charmosos do budismo "original", theravada, é que ele é cheio de listinhas: desde as listagens mais famosas, como o Nobre Caminho Óctuplo, as Quatro Nobres Verdades, os Cinco Agregados, até listinhas mais desconhecidas do praticante comum, como as 32 marcas físicas de um Buddha (que não o deixam muito atraente, aos meus olhos) ou os 12 elos da Corrente de Originação Interdependente, e demais quetais.
O charme destas listinhas, especialmente para pessoas com um pendor para a divagação e especulação, é que elas ajudam a ajustar e a focar melhor a vista, especialmente em momentos em que a prática parece dar um nó*; aqueles momentos em que, olhando em retrospecto para a sua prática meditativa, você se pergunta: "mas então, do que exatamente estamos falando?", e tcharám! Já que o buddha Śākyamuni não se encontra para conversar pessoalmente contigo... Algumas vezes nem mesmo um amigo mais experiente está disponível.
*(São também indicadas para os praticantes iniciantes que se apaixonam demasiado pelo suposto lado paradoxal da prática do zen, por exemplo - lembre-se, d. Maria, que por trás de um paradoxo sempre há uma lógica, agachadinha.)
Em uma cultura de transmissão oral, como era a dos primórdios do budismo, a formulação de listas e a repetição de fórmulas e frases feitas eram as técnicas mnemônicas mais utilizadas. Passe os olhos nos sutras budistas mais antigos e veja por si mesmo: a fórmula que Śākyamuni utiliza para expressar o seu Despertar, por exemplo, é praticamente idêntica em dezenas de ocorrências. Algumas vezes é maçante, e em outras é elegante: ajuda a criar um discurso consistente e atraente pela sua suposta simplicidade. As mesmas técnicas são também utilizadas em livros originalmente transmitidos oralmente, como os homéricos Ilíada e Odisseia, e (segundo alguns estudiosos) em muitas partes dos livros iniciais do Velho Testamento cristão, ou da Tanakh judaica.
Estas listinhas são tão úteis - "profícuas" - quanto uma lista de compras no supermercado, ou o hábito de possuir uma agenda para anotar a hora do dentista. Alguns se orgulham de ter uma boa memória, e de não precisarem ter de apelar para recursos externos para complementá-la. Na mitologia budista, o grande memorizador era o primo, discípulo e secretário do Tathāgata, o belo Ānanda, de cuja memória puderam-se fiar as inumeráveis suturas. Podemos imaginar, contudo, que o processo tenha sido um pouco mais humano: Ānanda, o savant, tendo suas memórias complementadas pela reunião de centenas de veneráveis bhikkhus - como um grande congresso acadêmico, mas sem coffee breaks. Memória apenas por memória: a temos e a desejamos mais. De um ponto de vista budista, porém, a pergunta é: memória para quê? Para orgulhar-se da mesma, ou para mantê-la abarrotada com as inevitáveis superfluidades da vida? Se estamos em déficit de algo, contemos com as facilidades que possuímos: tudo depende do uso que poderemos dar, à memória e às facilidades.
Ninguém exige, ou deveria exigir,de um praticante budista que ele memorize listas e coleções de itens; o valor delas reside somente em seu poder de "poder ver melhor", de ter mais clareza na prática cotidiana, e depende de circunstâncias e contextos. Para um professor ou instrutor tal necessidade é maior do que para um praticante leigo: mas não porque aquele sabe mais e, portanto, é "melhor", e sim para ampliar um repertório de ferramentas a ser utilizado parcimoniosamente, em vista de tal ou tal pessoa em tal ou tal lugar. Em vários momentos de seus sutras mais antigos, e em algumas formulações mahayana, Śākyamuni afirma o valor de ter uma "visão correta", um ponto de vista "correto" sobre o dhamma, mas para logo depois, então, reassegurar: o apego a um ponto de vista específico é tão improfícuo, para o Despertar, quanto a ignorância.