quarta-feira, 27 de julho de 2011

Fé e crença

A distinção entre fé e crença aponta para o fato de que uma religião historicamente dada e institucionalmente formulada sempre se refere a uma convicção responsavelmente assumida e vivida. Caso contrário, religião e fé tornam-se mero costume exterior ou dever imposto. Somente em experiências conquistadas pela crença se pode confirmar a fé. Por sua vez, a crença pessoal também se refere sempre a uma fé formulada, porque, caso contrário, ela não teria um lugar histórico e social; sem uma linguagem comum ela não poderia ser comunicada e não poderia confirmar-se numa vida comunitária.


Hans Zirker, filósofo e teólogo alemão

Creio que a maior analogia para se pensar esta questão de fé x crença é a linguagem. Caso você não tenha percebido antes, esta linguagem que você crê ser tão sua - afinal, é você quem a usa o tempo todo - foi transmitida e "ensinada" pelos seus pais, parentes, professores. No início, ela não tinha nada de sua. Isto, porém, não é impedimento para ela; não é por causa disto que a maldizemos e dizemos que ela é ruim por que "ela nos foi dada de forma não crítica", como uma crença. No começo, ela funciona como a crença. Cremos na linguagem de forma mágica, nos primeiros anos de vida. É preciso tempo e vida, porém, para que façamos da linguagem uma casa nossa; para que a tornemos nossa, a utilizemos da forma que nos aprouver.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Tênue Transmissão

Texto publicado no Todatsu Shinbun 5

Imagine a seguinte chamada de um jornaleco sensacionalista: “Lavador de arroz analfabeto recebe Transmissão; funcionários e monges furiosos com comportamento do abade”. Em poucas palavras, treze séculos atrás esta foi a história de Dàjiàn Huìnéng (Daikan Enō), o sexto ancestral do chan (zen) na China. Sua conclusão – incluso o belo poemeto-réplica de Enō - deixo como tarefa de casa. Adianto apenas que, para fugir dos monges enfurecidos, ele escondeu-se na casa de um caçador durantes uns bons anos, depois de ter recebido, no meio da noite densa, o manto e a tigela do velho abade, Daman Hongren (Daiman Kōnin), juntamente com um conselho: "Desde tempos antigos a transmissão do dharma é tênue como um barbante frouxo. Vá embora, rápido."

Enō viveu perto dos 80 anos, aprendeu a ler e a escrever e tornou-se um poeta e calígrafo renomadíssimo, além de um mestre zen prolífico. Algumas de suas obras sobrevivem quase intactas até os dias de hoje, e ele próprio é relembrado por nós, mesmo que brevemente, na nossa recitação das dezenas e dezenas de nomes da “Linhagem”. Sua história, com um gostinho de conto de fadas misturado com piada, é somente uma dentre várias: histórias que misturam angústia com despertar, sofrimentos e grandes alegrias, histórias de pessoas muito próximas de nós mesmos.

Tomemos Ānanda, por exemplo: o belíssimo, astuto e erudito Ānanda, o acompanhante, primo, amigo e “secretário” do Tathāgata. Acompanhando o Buddha por duas décadas como uma sombra, quem seria mais privilegiado do que ele, quem teria mais chances e oportunidades para a prática, esta prática onde amigos são tão importantes? Mesmo assim, o Tathagatha morre e Ānanda desespera-se: ele ainda não tornara-se um arhat. “Se nem um Desperto me serve de algo, devo ser um caso perdido”, imagino Ānanda ruminando, num choro agridoce a morte do amigo. Não é difícil sentir Ānanda vivo, aqui do nosso lado.

Ou então também há, como de praxe, histórias de grandes apostas; riscos desmedidos para ir atrás de algo. Numa época em que uma travessia marítima não era um cruzeiro turístico, Bodhidharma e o jovem Dōgen cruzaram mares, tanto para buscar quanto para levar o “verdadeiro dharma”. Admiramo-nos de sua coragem, ao mesmo tempo em que nos esquecemos que esta tenacidade, esta firme resolução de atravessar montanhas e mares, não é tão nossa desconhecida.

Seguem as histórias, seguem os exemplos, segue a familiaridade. Aprendemos a apreciar os “grandes feitos” dos outros a partir da nossa própria experiência. Para quem nunca pensou em sentar em zazen, as decisões e dramas de Dōgen, Bodhidharma, Ānanda e Enō podem parecer uma grande bobagem, uma grande “perda de tempo”. Se, porém, ao escutarmos uma história desta, sentimos um leve calorzinho de reconhecimento, sabemos de quem estamos falando: não estamos falando de pessoas que viveram e morreram séculos atrás, estamos falando sobre nós mesmos – como se o sangue de buddhas e ancestrais estivessem correndo nas nossas veias, esquentando os nossos pés e mãos.

Quanto mais praticamos, mais vemos a nossa fragilidade, a facilidade com que hesitamos e recuamos, os nossos pequenos passinhos de bebê. Mais apreciamos a força de vontade de algumas pessoas que fizeram grandes apostas; mais apreciamos a raridade que é encontrar um dharma que viceja verdejante. A gratidão é inevitável. Temos bons modelos onde nos fiar.

Mas não paremos por aí. Onde poderíamos ver apenas nomes esquisitos, de difícil pronúncia, amarelecidos pelo tempo, é preciso que nos enxerguemos. Todos eram pessoas como nós, nascidos de pai e mãe, bebedores de leite. De suas vidas, tirantes suas carreiras como professores e mestres, sabemos quase nada: alguns casos e crônicas e frases e ditos e escritos. O resto, “desnecessário”, perde-se - e talvez seja útil que assim o seja. Podemos encontrar nas entrelinhas, porém, as incontáveis histórias que ficaram e ficam por contar: as nossas. Não tão memoráveis, ou tão heroicas, e provavelmente fadadas à maré do esquecimento, como os nomes de nossos bisavós. Estas incontáveis vidas todas são, contudo, o solo fecundo onde se enraíza a prática, onde floresce o Despertar. Sem elas, a história de todos estes grandes homens e mulheres são folhas secas jogadas ao vento.

É preciso um esforço, o esforço da lembrança, para cimentar a memória efêmera – e não há nada mais efêmero do que uma lista de cem nomes. Efêmera e tênue é a transmissão: diz-se que, logo depois do seu Despertar, Shākyamuni ficou tentado a simplesmente permanecer em silêncio e usufruir a sua realização, a não ensinar o dharma - dharma tão sutil, tão difícil, tão sujeito a más interpretações. Foi preciso uma “intervenção divina” para que ele mudasse de ideia. O velho abade poderia ter ficado quieto. Bodhidharma podia ter ficado em casa, em vez de ir para o Leste. Que “chama” é esta que transmitiram, que segue contínua até os dias de hoje? Eu não sei dizer.

Enō foi acompanhado de noite, pelo velho abade, até estar a uma distância segura para seguir viagem. Logo antes do abraço final, entre recomendações, o velho abade fala: “Se você conseguir despertar a mente/coração de outra pessoa, esta pessoa não será nada diferente de mim.”

***

Os dados da história de Huìnéng, inclusive as falas do "velho abade", foram retiradas do Sutra da Plataforma, especialmente o primeiro capítulo, autobiográfico; tradução de Yampolsky, The Platform Sutra.

A descrição de Ānanda é do Denkōroku; o episódio da sua reação à morte do Buddha é relatada, de diversos modos, em vários sutras do cânon páli e sutras mahayana.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Grande dúvida

Deves duvidar profundamente, sempre e sempre, perguntando a ti mesmo o que poderia ser o sujeito que está ouvindo. Não preste atenção aos vários pensamentos ilusórios e ideias que possam te ocorrer. Apenas duvide mais, e mais profundamente, concentrando em você toda a força que há dentro de ti, sem mirar em coisa alguma e sem esperar nada em adiantado, sem pretender ser desperto e sem nem mesmo pretender não pretender ser desperto; torne-se como uma criança em teu próprio peito.

Takasui, mestre zen (rinzai?) japonês, século XVII

Não é interessante, a última frase?

Dizem que para a prática do zen é preciso uma grande confiança/fé, uma grande dúvida e uma grande determinação. Hakuin é outro mestre rinzai que enfatiza a "dúvida", especialmente na prática com kōan.

Nusuth, como diriam os handdaratas de Gethen.